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Quem viu o filme "Mary Poppins", de 1964, recordará talvez que a animadíssima preceptora foi contratada para assumir as tarefas educativas negligenciadas pel a mãe das crianças, sufragista ridicularizada na ideologia Disney. Mais do que os voos de chapéu-de-chuva, o que mais me agradou no filme - ainda hoje me parece um bela ideia - foi a capacidade de arrumar um quarto de crianças com um simples estalar de dedos. Faz inveja a qualquer um. Esse processo de arrumação ainda não foi posto em prática, mas o direito de voto desejado pela mãe Banks tornou-se real ontem em mais um país.
As mulheres sauditas poderão votar e candidatar-se nas eleições de 2015, mas não nas que vão ocorrer na próxima quinta-feira. O rei Abdullah fez o anúncio, deixando em vigor por mais quatro anos uma regra que estava a ser contestada no país.
As activistas sauditas ficaram naturalmente contentes com a possibilidade ontem aberta. Entre elas, conta-se Manal al-Chérif, a mulher que cumpriu em Maio dez dias de prisão por ter conduzido um automóvel.
As mudanças que marcam o início deste século no mundo árabe, noutros países apelidadas de "Primavera", são em muitos aspectos inesperadas, por corresponderem a um afastamento do radicalismo islâmico que parecia ser o caminho inevitável ainda há poucos anos.
Creio que a entrada das mulheres na vida pública representou a grande mudança do século XX no chamado mundo ocidental. As gerações mais novas não duvidam hoje, em Portugal, quando se pergunta se as mulheres devem estudar, votar, trabalhar. Mas passou pouco tempo desde que as mulheres não podiam pedir passaporte nem viajar sem autorização dos maridos, só para dar um exemplo que hoje é absurdo. Muito dessa realidade vivia-se não no plano legal mas no modo como se vivia o quotidiano, na preocupação permanente com "o que as pessoas vão dizer", com as aparências.
O direito das mulheres ao voto, que em Portugal foi inicialmente reclamado por sufragistas republicanas que queriam a plena cidadania, demorou décadas a chegar. Desde que Carolina Beatriz Ângelo, médica e viúva, conseguiu votar para a Assembleia Constituinte de 1911, muita História passou e muitos avanços e retrocessos aconteceram.
Ontem à tarde, um homem matou a mulher à facada no centro da cidade de Lisboa. Lavou a faca, arrumou-a e ligou à polícia. O ano de 2010 teve um total de 43 vítimas deste tipo de crime em Portugal, e em 2011 o ritmo está a ser alarmante.
Qual é a relação desta história com o direito de voto? São quartos por arrumar que se mantêm nas cabeças e que nenhum estalar de dedos vai resolver.