Corpo do artigo
Não recordo precisamente a data em que esta história se passou mas estávamos aí pelo fim dos anos 50. Estávamos, por isso, em pleno salazarismo. Quer isto dizer que qualquer assomo de "cultura" era, então, objecto de preocupada vigilância por parte da inculta polícia política do regime que em tudo via subversão. Simetricamente, todos os contestatários do regime viam no mais pequeno detalhe dum livro, duma pintura ou dum filme, um gesto de revolta e um ensaio de subversão. É bem natural que os protagonistas desta pequena "estória" já não se recordem dela mas o facto ficou indelevelmente gravado, como lição, na minha memória de jovem contestatário de então.
Nessa noite, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, ali bem no centro da cidade e no edifício (felizmente, já recuperado) onde ainda hoje está sediada a instituição, Manoel de Oliveira falava sobre os seus filmes e, muito em particular, sobre "O pintor e a cidade", o mais recente de todos e que tinha como tema de fundo a cidade do Porto e como referência as notáveis aguarelas e desenhos do mestre António Cruz, que a "retratou" como ninguém. Então, e para além de algumas curtas-metragens e documentários que integravam a sua notável filmografia, constavam já os surpreedentes "Douro, faina fluvial" e "Aniki-Bóbó". No entanto, "O pintor e a cidade" era o centro da conversa.
De facto, o filme era - e ainda é - um fantástico olhar sobre a cidade lançado por um dos seus mais argutos observadores de sempre. Contudo, entre algumas singularidades da obra - tratava-se, por exemplo, de um dos primeiros filmes a cores da história do cinema - avultava o facto de ter sido filmado pelo próprio Manoel de Oliveira, o que dará origem a esta pequena reflexão. Nessa noite, Manoel de Oliveira falou do que fez com a habitual clareza e simplicidade com uma sala cheia de gente que ali estava em busca da chave do seu pensamento! Foram muitas as perguntas e outras tantas as respostas que Manoel de Oliveira deu. E quase não houve cena, plano ou sequência que não tivesse sido dissecada e observada com detalhe. A todos, Manoel de Oliveira foi respondendo mas, não raro, foi "desarmante": "não tinha reparado nessa possível leitura da cena...", "...essa interpretação é possível...", "...não sei explicar bem por que fiz assim...", foram muitas das palavras do autor.
Ora, uma das questões levantadas, tinha a ver com um belíssimo plano do filme que é um longo e lento "travelling" da Torre dos Clérigos que começa na base e termina no topo, prolongando-se, depois, pelo tranquilo voo de uma pomba que por ali passava e que a câmara de Manoel de Oliveira segue até se perder como um pequeno e imperceptível ponto no azul intenso do céu da cidade. O plano é, de facto, muito bonito e deixa um rasto de mistério a que nenhum espectador fica indiferente. O que quereria Manoel de Oliveira dizer com este remate para a cena, questionou um dos presentes? Seria o quê? Um sinal da poesia que claramente se desprende das imagens ou um encriptado "grito de liberdade e revolta" e, portanto, um premeditado acto subversivo do autor do filme? Os vigilantes do regime presentes agitaram-se, mas Manoel de Oliveira respondeu, com a maior das simplicidades, que "o guião do filme mandava que o "travelling" fosse feito mas eu não podia exigir nem adivinhar que quando chegasse ao cimo da torre lá estivesse uma pomba... mas como ela estava lá e era eu que tinha a máquina na mão, filmei-a! Contudo, quem quiser ver nas imagens mais do que eu conseguir ver, é inteiramente livre de o fazer".
Surpreendentemente simples como só os grandes criadores sabem ser. Simples e verdadeiramente subversivo, como sempre é toda a arte que é sincera e autêntica como é a de Manoel de Oliveira que nunca deixou de nos surpreender e agitar. Felizmente!