Corpo do artigo
1 É escusado repetir que as eleições autárquicas servem para eleger os órgãos da democracia local - câmaras, assembleias municipais e assembleias de freguesia - e não para "referendar" as políticas do Governo da nação. Porém, basta ponderar o destaque que assumiram ao longo de toda a campanha os temas da governação - a reposição de rendimentos, a criação de emprego, a retoma da economia e o controlo do défice - para perceber que o êxito das políticas apoiadas pela aliança dos partidos da Esquerda parlamentar exerceram uma inevitável influência nos resultados eleitorais. Mobilizaram os cidadãos descrentes que de outra forma se teriam deixado arrastar para a abstenção, minimizaram derrotas quase certas e potenciaram vitórias improváveis.
2. Notoriamente, desta vez, os cidadãos não se serviram das eleições autárquicas para enviar um sinal de censura à governação. Pelo contrário, os resultados eleitorais demonstraram enfaticamente que o Governo atual continua a merecer a confiança dos cidadãos e que está obrigado a manter o rumo das políticas que promoveu até aqui. Dois anos depois das eleições legislativas de 4 de outubro de 2015, encerrou-se um capítulo e abriu-se um novo ciclo. O exercício do poder do voto nas eleições locais reafirmou a evidência que alguns se obstinavam a negar, ou seja, que os acordos firmados pelo PS com o Bloco de Esquerda, o PCP e os Verdes para derrotar a coligação da Direita e garantir um novo Governo e uma política diferente para o país, não só cumpriu um imperativo democrático como também se revelou capaz de satisfazer as legítimas expectativas dos eleitores. E, de caminho, o quadro político-partidário da representação parlamentar ganhou uma inédita centralidade e uma qualificação política mais transparente e mais apta a oferecer aos cidadãos resposta justa e adequada para os problemas que enfrentam.
3. Por isso, não é fácil compreender as vozes agoirentas que vaticinam dificuldades acrescidas no relacionamento entre os partidos que dão apoio parlamentar ao Governo minoritário do Partido Socialista. É lógico que a contabilidade de ganhos e perdas de votos e mandatos em mais de três centenas de municípios e cerca de três milhares de freguesias tenha dececionado alguns e tenha alegrado outros. É lógico que o êxito da governação - mérito que foi reclamado, e bem, por todas as formações políticas da Esquerda! - tenha privilegiado, em particular, o PS - o partido do Governo - e que isso suscite apreciações diversas conforme o lugar e as expectativas criadas. Cada um deverá de retirar as conclusões devidas e corrigir, se for o caso, aquilo que falhou. Não seria lógico nem compreensível transformar em motivo de disputa o entendimento que justamente permitiu os sucessos ainda há pouco reclamados na campanha autárquica.
4. Não podemos omitir a enorme preocupação que nos provoca o agravamento da situação na Catalunha e o recurso pelo Governo espanhol à repressão policial violenta de um referendo pacífico. Não se bastou com a declaração de invalidade e tentou recorrer à coação física para impedir o exercício cívico do voto. No mesmo dia em que milhões de portugueses se dirigiram tranquilamente às assembleias de voto para legitimar os órgãos do poder local, contaram-se por muitas centenas o número de catalães feridos, vítimas de agressão indiscriminada, estúpida e gratuita. Tudo o que Mariano Rajoy conseguiu, foi apenas uma derrota humilhante que enxovalhou o reino e prejudicou o diálogo com os descontentes - única via razoável para regular as aspirações autonomistas na democracia aberta e plural em que a Espanha contemporânea se transformou.
* Deputado e professor de Direito Constitucional