Três palavras, uma frase, um verso, um trecho de música, o seu nome - manuel antónio pina: o mensageiro irreverente de uma esperança desenganada, o talento de uma prosa pontualmente servida, limpa e frugal, ao princípio de cada manhã. Há muito tempo que nos inquietava a ausência daquela discreta coluna, na última página do "Jornal de Notícias", que nos inspirava com a lucidez do seu pensamento, o estímulo da sua crítica ácida, provocante e sedutora, aquela escrita singular que prodigiosamente combinava o rigor do juízo com a graça do dizer. Era possível lê-lo e discordar, por vezes, mas sempre resistia uma indefinível cumplicidade, insinuada por outras vibrações, simpatias, subterrâneas confluências.
Corpo do artigo
Numa entrevista ao "Jornal de Letras", lembra Isabel Coutinho no "Público" de 19 de outubro, o poeta contava que, em criança, a mãe ao vê-lo de joelhos, em dia de assustadora trovoada, a escrever sobre o tampo de uma cadeira, imaginou que estaria a rezar. Afinal, esclarece, escrevia uns versos sobre o milagre das rosas, para exorcizar o medo. De facto, a força persuasiva da sua prosa vem da poesia que, segundo outro poeta - Carlos Poças Falcão - é uma forma de rezar, um murmúrio, um jeito de interpelar os deuses para os convocar ou demover de intentos adversos. Ou então, que a poesia se transmude num "manual de arquitetura" em quatro quadras, como nas "instruções" que Manuel António Pina recomenda para o desenho de uma casa - "usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos (...)":
"Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.
Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
Como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.
Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.
Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstração e sem um plano rigoroso."
(Manuel António Pina,
Como se Desenha uma Casa,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2011)
Agora que a sua ausência física se tornou irreparável, despedimo-nos "como quem embala um remorso". Para todos nós que continuamos a escrever nas páginas deste jornal que com ele partilhávamos como honra e privilégio, nada pode amenizar esta perda... Exceto persistir, pela escrita, na busca nunca satisfeita daquela exemplaridade que ele soube inscrever no melhor da nossa Imprensa e que, generosamente, nos legou. "Anoiteceu, apagamos a luz (...)"