Não sou de panegíricos fáceis. Todavia, o presidente da República fez ontem, no Parlamento, o seu melhor discurso, de seis, a pretexto do 25 de Abril.
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Não porque tivesse inteligentemente evitado a "actualidade", refugiando-se na História e na autobiografia, mas porque acabou por dar uma aula sobre os últimos 60 anos de Portugal. Ao pé dos que o antecederam na oratória, praticamente todos fanáticos, sem excepção ou elevação, Marcelo distinguiu-se. Falou da nação e para a nação, sem cair na vulgaridade patrioteira ou em piedosos apelos a "consensos" para isto ou para aquilo. Dirigiu-se sobretudo aos "subquarenta e sete", àqueles que já nasceram sem império, ou à beira de o perder, e que nunca conheceram outra coisa senão isto, este regime de democracia que o presidente, e bem, caracterizou na sua imperfeição. Quer pela sua natureza, quer pelo que fizeram dela, acrescento eu. Ninguém, de facto, melhor do que Marcelo poderia ter "ligado", como ele ligou, o Ultramar português dos anos 60, marcado pela guerra dita colonial e pelo Estado Novo, e o regime originado pelo pronunciamento militar do dia 25 de Abril de 1974. Com a autoridade moral e política do sufrágio directo e universal que, por duas vezes, lhe foi conferido pelo país, o presidente honrou passado e presente, sublimados, respectivamente, na figura de governante de seu pai e na sua própria circunstância de agente activo neste regime, desde a Assembleia Constituinte de 1975-1976 até ao cargo de chefe de Estado. Explicou que apenas podemos actuar com eficácia sobre o presente se respeitarmos, conhecendo-a e estudando-a, a História, nas suas sombras e luzes, sem hipotecas ideológicas oportunistas. E fê-lo, ainda, através da belíssima referência que dirigiu a Ramalho Eanes como símbolo indisputável da História que Marcelo quer que se tente perceber. Constou-me que, uns dias antes, na Faculdade de Direito de Lisboa, Marcelo interveio brilhantemente na evocação da memória do professor Pedro Soares Martínez - insigne mestre e decano daquela escola, homem de cultura e meu saudoso professor na Católica -, recentemente falecido. No prefácio, de 1985, à sua "História diplomática de Portugal", Martinez escreve que "o futuro há-de sempre ser condicionado pelo pretérito, apresentando-se-nos a História como uma continuidade lógica relativamente intemporal, sobreposta à cronologia". Assim esteve Marcelo, ontem. À altura dela, "avesso a quaisquer mitos", sem complexos, temores reverenciais ou demagogias de circunstância.
Jurista
o autor escreve segundo a antiga ortografia