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Não foi a primeira vez - nem será certamente a última - que Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou uma data redonda para exaltar a fibra do povo português. Fá-lo, de resto, com uma naturalidade e recorrência tais que, por vezes, se torna entediante receber tantos elogios e perceber que, em demasiadas dimensões, Portugal não tem evoluído à mesma velocidade dos predicados com que o presidente adoça os ouvidos da nação. Mas o contexto político deste 10 de Junho obriga a que olhemos para as palavras do chefe do Estado com outro alcance. Ao dizer Portugal é o seu povo, ao enfatizar que foi a "arraia-miúda" que nos alcandorou à condição coletiva em que nos encontramos, Marcelo também está a dizer "o meu poder emana do povo" (o presidente é o único titular de um cargo político eleito por voto direto) e é a ele que devo lealdade e compromisso, independentemente das circunstâncias. Eu (também) sou o povo, simplificando o recado presidencial.
Dirão: não passam de lapalissadas proferidas com solenidade. Olhem que não: seriam realmente deduções lógicas se no outro prato da balança não estivesse um Governo de maioria absolutíssima liderado por um político-eucalipto que seca tudo à sua volta. O único, na montra do poder, capaz de ombrear, em popularidade e influência, com o omnipresente Marcelo.
Ao erguer o povo num pedestal, o presidente lembra também ao Governo que as tentações absolutas devem ser moderadas por essa bússola, e que caberá ao chefe do Estado interpretá-las. Mas Marcelo, que tem a varinha constitucional nas mãos, sabe perfeitamente que é o Governo quem determina verdadeiramente o destino do povo. Com as decisões que toma, com as políticas que adota, com a estratégia económica que traça. A arraia-miúda escolhe as lideranças políticas, mas são as lideranças políticas que marcam o passo da arraia-miúda. O poder do povo, como o poder de Marcelo, reside sempre na forma como abre portas ou fecha caminhos. O Governo governa, o presidente vigia. O povo espera apenas que um e outro não se enganem muitas vezes.
*Diretor-adjunto