Mário Soares
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Na entrevista concedida ao jornal "Público" do passado domingo, Mário Soares faz um juízo severo sobre Portugal e a Europa, descreve o estado atual da democracia, deplora o descrédito da política e a crise dos partidos, denuncia as políticas de austeridade promovidas na Europa por "esta gente de extrema-direita que acredita que os mercados são mais importantes que os Estados e as pessoas!".
É um fundador do nosso regime democrático e principal responsável pela adesão de Portugal à Europa quem agora assume o dever de avisar que é a própria democracia que corre perigo, e é ele quem lança o alerta de que "se isto não muda é o abismo para a Europa".
A dureza do diagnóstico não obscurece a sua fidelidade aos princípios democráticos nem aos ideais da construção europeia. Pelo contrário, as suas palavras são o testemunho exato da crença de que ainda vamos a tempo de evitar que a indignação degenere em violência generalizada e incontrolável - com o risco de se abrirem as portas ao "fascismo ou uma ditadura com outro nome" - e consegue discernir com esperança os sinais de que a Europa vai finalmente ser obrigada a mudar de rumo para se reencontrar, reinventar a solidariedade que marcou a sua conceção e nascimento, e salvar a união monetária.
Não poupa sequer o Presidente da Comissão. No seu balanço, os dois mandatos de Barroso à frente da Comissão Europeia foram desprestigiantes para Portugal. Os problemas vividos em Portugal nunca são analisados separadamente da situação da Europa e do Mundo. Mário Soares exprime a sua indignação perante a destruição do país, a paralisia do Governo, a indiferença do Presidente, a impunidade dos que roubaram o Estado "em bancos e fora de bancos". E explica as razões que o levaram a promover o "encontro das esquerdas" na "Aula Magna": "o objetivo era fazer pensar as pessoas. Há hoje muita gente que não é dos partidos, muita gente que está contra os partidos e contra os políticos. É preciso que os partidos percebam que os tempos mudaram...". "É uma questão europeia e até mundial. Ninguém gosta da política, porque a política foi muito desprestigiada pela gente do dinheiro". Por isso, há que traçar uma fronteira bem clara entre a política e os negócios. E dá o seu próprio exemplo: "nunca fui homem de negócios." Tal como Salgado Zenha, recorda, "quando fui eleito deputado entreguei o meu cartão de advogado à Ordem. Até hoje".
Em 1987, Cavaco Silva era o primeiro-ministro de um Governo minoritário. Mário Soares era o Presidente da República que, em janeiro de 1986, tinha derrotado na segunda volta das eleições presidenciais o candidato apoiado por Cavaco Silva. Com o voto favorável do PS, decidido à última hora pelo então secretário-geral, Vítor Constâncio, e com Mário Soares ausente no Brasil, em visita oficial, a Assembleia da República aprovou uma moção de censura que provocou a demissão do Governo. Contra os que pretendiam promover a formação de um Governo da Oposição, incluindo alguma gente do PS, o Presidente da República optou por dissolver a Assembleia e convocar eleições legislativas antecipadas que iriam dar ao PSD a maioria absoluta. Mário Soares explica que o seu primeiro objetivo era defender a "unidade do país". "Fui Presidente eleito por uma escassa maioria, não queria que o país ficasse dividido em dois". E nesse gesto lúcido consumou todo o sentido útil do nosso original "semipresidencialismo".
Não há salvação isolada para os Estados-membros da União. Dois dias antes da publicação da entrevista de Mário Soares, era a vez de Daniel Cohn Bendit reagir contra a tentação do ceticismo suscitada pela denúncia aguerrida dos desastres presentes da construção europeia - no âmbito da conferência de "Os Verdes", organizada por Rui Tavares no "Mercado da Ribeira", em Lisboa: "Salvar a Europa a partir do Sul" - fazendo ali um apelo veemente em defesa dessa "utopia generosa" que a Europa tem de continuar a prometer. O projeto europeu continua de pé, como instrumento da paz, da liberdade, da democracia, da solidariedade entre os povos, do progresso. Deste lado da barricada estamos em muito boa companhia.