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O pastor de Águas Vivas fala mirandês e sabe proteger-se de um frio que teima em não chegar. Há muito que guarda as ovelhas, há tanto que é capaz de não se lembrar da sua vida antes de caminhar por entre as nascentes de água e planaltos. O pastor diz "Augas Bibas" e fala com os animais, mesmo quando está em silêncio. Cheira o perigo e a proximidade da chuva. Conhece todos os habitantes do primeiro ao último nome, talvez até os dos mortos, dos que trabalhavam nas minas de volfrâmio que ajudavam ao esforço de Salazar para se manter neutro, mas agradando aos nazis. O pastor chama-se José e na manhã de domingo, ao abrir a cancela, viu um campo de sangue. Ovelhas desmembradas, vísceras de fora, animais em agonia. Um campo de morte assim não é tão diferente de um lugar de sofrimento humano, o mesmo bafo a morte. Os lobos tinham matado 21 ovelhas e ferido outras nove. O senhor José sabia tudo menos explicar como fora possível que quatro ou cinco lobos tivessem entrado sem despertar o cão de vigia. O certo é que entraram para uma matança que durou uma madrugada. Em Águas Vivas, concelho de Miranda do Douro, distrito de Bragança, os lobos ainda uivam quando têm fome ou medo. Ainda atacam quando sentem uma possibilidade de se cumprirem no destino para que nasceram. Leio a notícia e há em mim um tipo raro de felicidade - poder dizer que há lugares em que a natureza, mesmo brutal e esmagadora, ainda se cumpre. Saudades das histórias de lobos da infância, saudades de quando o mundo era mais simples de explicar.