Em agosto, a jornalista Rute Coelho, do "Diário de Notícias", deu conta da extraordinária burla que a PSP desmantelou em Lisboa, em que "um grupo de homens bem vestidos e de conversa fácil" conseguiu vigarizar pelo menos 13 idosos.
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O grupo vendia um bem precioso para quem a idade já pesa: memória. Uma simples máquina de filmar tinha sido transformada numa "máquina de avivar a memória", pela qual o primeiro burlado foi convencido a pagar 5300 euros. Numa era em que transbordamos de memória digital, conservada em milhões de selfies e de páginas de Facebook, não é de estranhar que quem não domina a tecnologia queira também participar da festa, caindo na esparrela.
Como afirma José Augusto Dias Júnior, no seu livro "Os contos e os vigários", as vigarices são também um produto do seu tempo: "Ao estudar os golpes que eram aplicados em determinada época e local, estamos ao mesmo tempo mapeando os imaginários e as convicções que ali tomaram lugar. O conto do vigário aparece como um retrato invertido da vida e da cultura de uma comunidade em um período dado da sua história".
Soa por isso quase a uma evidência que a burla da Volkswagen, ao manipular por vários anos dados sobre as emissões de gases poluentes em 11 milhões de veículos em todo o Mundo, tenha como objeto central um bem tão precioso hoje como o ambiente. Trata-se de sossegar a nossa boa consciência fazendo-nos acreditar que os automóveis, movidos a combustíveis fósseis, poluentes como tal, não são, afinal, tão maus como isso. Que para o fazer lhe tenha bastado umas linhas de código num dispositivo eletrónico, é mais uma marca da sua contemporaneidade.
Vindo a vigarice de um dos mais reputados e maiores construtores de automóveis, de uma Alemanha onde a consciência ambiental é elevada, conseguindo iludir as regras nos Estados Unidos, só nos pode fazer recear que na indústria automóvel e em inúmeros aparelhos controlados eletronicamente, que nos vendem como ambientalmente eficientes ou com as capacidades "xpto", tudo não passe de treta.
É um direito legítimo que nos assiste e que nos deve fazer exigir melhores serviços de inspeção e de controlo, para fabricantes que têm do seu lado poderosos recursos financeiros com que logram vender com menor esforço. De outra forma, temos de concluir que os regulamentos e leis que brotam tão abundantemente das autoridades europeias e nacionais têm tanto valor como uma máquina de avivar consciências.