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A nossa Constituição afirma Portugal como uma República soberana, baseada na dignidade humana, empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Esta comunidade democrática impõe um constante progresso e conquista de direitos humanos, civilidade, qualidade de vida, desenvolvimento da personalidade e espírito de tolerância, aceitação da diferença e tratamento humanizado de todos os seres vivos, apelando à responsabilidade de todos na evolução social e das mentalidades. Estes princípios são incompatíveis com os maus-tratos, violência e tortura quer sobre humanos quer sobre animais. Em resposta ao apelo internacional de criminalização da violência gratuita e desumana sobre animais de estimação, o CP introduziu, em 2014, o art.o 387.o, alterado, amplificado e agravado em 2020. Ao abrigo destes normativos, muitas foram as decisões condenatórias transitadas. Uma sociedade imbuída de princípios humanitários reconhece a todo o ser vivo o direito a uma vivência acarinhada, com respeito pela sua integridade física e psicológica. Porém, em 2021, o Tribunal Constitucional proferiu acórdão, julgando inconstitucional aquela norma. Todos os juízes conselheiros subscritores votaram a decisão, mas dois deles divergiram da respectiva fundamentação. A maioria entendeu não haver respaldo constitucional para art.o 387.o. Numa das declarações de voto, a inconstitucionalidade da norma advém de nela não se identificar o bem jurídico protegido. Na outra, aceita-se o seu suporte constitucional, baseado na dignidade do ser humano, como princípio jurisgenético e o reconhecimento do estatuto dos animais enquanto seres vivos dotados de sensibilidade... e que uma república baseada na dignidade da pessoa humana - no estatuto superior desta como criatura de valores - não pode deixar de se preocupar com o bem-estar dos animais e de outorgar a estes a protecção jurídica correspondente. Mas conclui que a norma é inconstitucional por violação do princípio da tipicidade em matéria penal. Ouso chamar a atenção para o facto de não haver sequer unicidade de entendimento sobre a fundamentação da decisão que subscreveram. Algo tão complexo não pode ser objecto de uma interpretação formal e literal do texto da CRP. E não será que a apelidada indefinição quanto ao conteúdo da acção e a pretendida indeterminação do objecto do crime deverão ser preenchidas pela jurisprudência, como ocorre com outras normas do CP? Entretanto foi entregue um manifesto, também subscrito por mim, aos titulares dos órgãos de soberania e representantes dos partidos políticos defendendo a constitucionalidade da tutela penal dos animais e pedindo que contribuam decisivamente para tranquilizar a sociedade civil, política e jurídica. A construção de um Portugal democrático cada vez mais densificado e conforme ao Direito Internacional exige que todos os seres vivos sejam protegidos criminalmente dos maus-tratos e perversidade.
A autora escreve segundo a antiga ortografia
*Ex-diretora do DCIAP