A atmosfera delirante que nos media fomos criando ao longo dos anos em redor do caso Esmeralda foi culpada dos muitos absurdos que a situação assume.
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As disputas paternais são tão antigas como a história da humanidade. O registo bíblico da justiça de Salomão, verídico ou fantasioso, diz-nos que a luta pela posse de uma cria é feroz. O juízo de Salomão mostra que é preciso uma simultaneidade de imaginação e autoridade para levar a bom termo tão difícil decisão.
Em Portugal faltaram estes dois ingredientes. Imaginação judicial na busca de soluções harmónicas para os envolvidos e autoridade para as impor a tempo de proteger a menina. Como sempre, onde há vazio da razão o caos generaliza-se e os media descrevem-no.
Todos nós, responsáveis pela informação pública em Portugal, entre 2003 e o momento actual utilizámos os termos pai afectivo e pai biológico no imenso drama humano para que Baltazar Nunes, Luís Matos Gomes e uma menina que agora tem sete anos foram sendo arrastados. Com isto manipulámos. A sociedade foi confrontada com relatos onde a escolha parecia ser simples. Entre a biologia e os afectos. E não era só isso. Se os afectos contam e a biologia é determinante, a razão tem de ser decisiva. Nos media, ao longo destes anos, a criança transita entre as famílias afectiva e biológica, diluindo-se em afectos e biologias que acabaram por fazer a todos perder o sentimento de si, como o descreveu António Damásio, a referência onde se conjugam identidades, direitos, obrigações e dignidades. A menina, descrita meramente pelas envolventes de biologias e paixões, foi sendo despida da sua identidade própria e dos seus direitos, enquanto outros actores iam adquirindo novas identidades, também elas tipificadoras dos seus papeis mediáticos no imenso drama da vida real onde houve pouco jornalismo e muito guionismo. Baltazar Nunes perde o apelido e torna-se meramente "Baltazar". Luís Matos Gomes torna-se no "Sargento Gomes". Com estes rótulos passam a constituir parte do elenco do reality show que tudo condicionou. Chegou a absorver a própria ficção. Na TVI, a telenovela A Outra evoluiu criando a figura de um pai afectivo e de uma mãe biológica que em episódios sucessivos se digladiam entre cenas de sequestro da criança, esgrimindo afectos e oportunismos. Todo este ambiente atraiu para o palco mediático figuras públicas que foram lançando molhos de palha seca na fogueira inquisitorial que nos média íamos mantendo acesa, entre campanhas de angariação de fundos e tentativas de conseguir de algum dos protagonistas uma declaração que desse manchete de jornal ou nota de rodapé na TV. O Estado ia notificando e não notificando. Detendo e libertando. Hesitando e brutalizando todos. José Gil, o filósofo que melhor nos descodifica nas nossas complexidades disse recentemente numa conferência em Serralves que "quando uma sociedade se torna delirante não vai para um manicómio. Torna-se num manicómio." É nisso que nos vamos tornando com mais este caso de comportamentos irracionais em que psicólogos dizem tudo e o seu contrário e juristas tentam fazer nexo num Estado que prefere resguardar-se atrás de um guião mediático abdicando da acção, novamente como José Gil diz noutra obra, refugiado "No Medo de Existir".