Medidas excecionais em tempos de exceção
Os média internacionais têm promovido um debate importante, mas que transporta alguns perigos: os limites de atuação dos estados, particularmente daqueles que se constituem como democracias liberais.
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No centro da discussão está um eventual deslizamento para regimes autoritários. Confesso que considero a questão extemporânea neste tempo que nos convoca a todos para a urgência sanitária em que nos afundamos.
Há uns anos, passei 27 dias numa unidade de cuidados intensivos de um hospital público. Acompanhava o meu pai. Nunca esqueci essas intermináveis visitas. Um dos momentos mais duros era quando subitamente entravam naquela UCI de acesso restrito várias pessoas para se despedirem de um familiar que morreria dali a horas. Nessas alturas, as cortinas fechavam-se à volta da cama desse doente e eu tinha de me sentar para aguentar o peso daqueles instantes. Penso que os médicos e enfermeiros também não ficavam indiferentes a nada daquilo, embora lhes fosse exigida distância emocional para tomar decisões e trabalhar com a normalidade possível. Mas nada daquilo era normal.
Nestas semanas, tenho pensado muito naquele tempo. No sofrimento de quem lá estava, na aflição dos acompanhantes dos doentes, no empenho dos profissionais de saúde... Hoje, o ambiente das UCI é certamente mais pesado. Agora, morre-se ali sozinho. Por isso, é com revolta que, da janela da minha casa, vejo pessoas em caminhadas ao ar livre, como se este tempo não fosse de uma colossal contenção de movimentos.
Ao percorrer as principais revistas de informação internacional, reparo que a agenda noticiosa privilegia agora o tema dos poderes dos estados para controlar as pessoas. A China e a Alemanha são apresentados como exemplos de regimes repressivos ou respeitadores das liberdades individuais, respetivamente. Num artigo publicado no jornal alemão "Die Welt", escreve-se que é preferível ter uma chanceler a um presidente-rei, numa referência a Emmanuel Macron e às suas metáforas bélicas que lembram permanentemente o estado de guerra em que nos enterramos. Nesse texto, faz-se a apologia do federalismo alemão e elogia-se Angela Merkel por não ter tomado medidas tão duras como a Itália e a Espanha. Foi esquecido um elemento fundamental: o sentido de causa pública, o respeito por regras coletivas e a ideia de dever. Um alemão nunca pode ser comparado a um italiano...
Em Portugal, a nova fase do estado de emergência poderá endurecer certas medidas. Serão medidas excecionais. Que todos devem respeitar, não fazendo derivar isso para discussões estéreis que nada contribuem para um bem maior: a saúde de cada um.
*Prof. Associada com Agregação da UMinho