A democracia portuguesa estendeu-se, até hoje, por três ciclos políticos claramente individualizáveis. O primeiro, entre 1974 e 1982, foi o que corporizou o processo de construção de uma democracia representativa europeia. Foi um processo excessivamente lento e tumultuoso. Demorámos oito anos a construir uma democracia civilista sem tutelas, enquanto que a Espanha e a Grécia, também saídas em simultâneo de regimes autoritários, arrumaram a casa em cerca de um ano.
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Foi tumultuoso porque, saídos da ditadura, tivemos que afrontar a voracidade de alguns que aspiravam à implantação de regimes como mesmo tipo de matriz. Essa "guerra", de quase uma década, teve os seus heróis a quem o país muito deve. Sá Carneiro e, principalmente, Mário Soares.
O segundo período, entre 1983 e 2005, foi o da entrada na União Europeia e o da preparação para a adesão à União Económica e Monetária, conducente à institucionalização de uma moeda única europeia. Foi um período de grandes reformas estruturais - as privatizações, a abertura da propriedade de órgãos de comunicação social a entidades privadas, a estabilização do regime da propriedade de solos agrícolas, etc.. Foi também uma década de crescimento económico robusto, equilíbrio das contas públicas e diminuição da dívida externa a mínimos históricos. Foi uma década de verdadeira revolução ao nível da modernização de infra-estruturas.
Tal como a primeira, foi uma época em que, para o bem e para o mal, teve os seus rostos. E o de Cavaco Silva, enquanto seu líder incontestado e bem sucedido, é incontornável.
Finalmente, entre 2005 e 2011, co-habitamos já com 16 anos de um percurso em que nos devíamos ter preparado para a batalha da competitividade numa Europa sem fronteiras, num mundo globalizado.
Devíamos ter realizado grandes mudanças na administração pública, no sector empresarial do Estado, na justiça, na legislação laboral. Ao invés, esbanjámos, gerimos mal e sem rumo, e conduzimos o país à triste situação actual. E, porque tal é um dos factores decisivos para uma escolha consciente, é necessário identificar os responsáveis por este passo atrás.
Fico pasmado com a forma displicente e altiva como a actual maioria e o seu líder se querem colocar de fora dessas responsabilidades.
É verdade que a crise dos sectores imobiliário e financeiro norte-americano desencadearam uma crise global, é verdade que a Europa navega há muito sem timoneiro, mas limitarmo-nos a essas duas desculpas seria aceitar que um Governo em Portugal não serve para nada. Constatação tanto mais grave quanto a actual maioria governou em 14 dos últimos 16 anos.
O actual primeiro-ministro é mesmo o português vivo que mais anos esteve em cargos executivos governamentais - seis como chefe do Executivo e oito como ministro e secretário de Estado.
Ora, a culpa política não pode morrer solteira. Quatro líderes dividiram responsabilidades nesta fase, mas a actual maioria, que já leva meia dúzia de anos de assunção de poder exclusivo, governou em mais de 80% deste período de tempo.
Uma vez esclarecida esta questão subjaz uma outra muito cara ao discurso oficial de José Sócrates. Segundo ele, a crise aguda que conduzirá a eleições antecipadas foi desencadeada por uma oposição sem sentido de Estado. Segundo o próprio, repetiu-o à exaustão nos últimos dias, ele tudo fez para promover o diálogo a aproximação de pontos de vista!
Com o devido respeito, é preciso muita "lata" para fazer esta afirmação.
Foi ou não foi o actual primeiro-ministro quem avançou na praça pública com mais uma pacote restritivo sem mesmo informar o presidente da República? Foi ou não este primeiro-ministro quem negou no Parlamento a necessidade de tais medidas na véspera do seu anúncio ao país?
Foi ou não este primeiro-ministro quem ocultou que estavam há mais de quinze dias em Lisboa a ultimá-las técnicos da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu?
Isto será fazer tudo para um entendimento alargado? Isto será um sinal de uma atitude construtiva e dialogante?
Face a estas evidências, parece óbvio que o primeiro responsável pela crise em termos estruturais é também o mesmo que, sabe-se lá por que razão, empurrou o país para eleições gerais.
Agora é o momento de os partidos políticos e dos candidatos ao cargo de primeiro-ministro esgrimirem outros argumentos, nomeadamente os seus programas de governação. Todavia, a verdade sobre o passado é um legado que não é étíco apagar.
PS - Esta semana assistimos a uma inqualificável intromissão de Angela Merkel na nossa política interna. Elogiando Sócrates e criticando o Parlamento português. Lastimo esses toques de autoritarismo que nos ressuscitam fantasmas de um passado próximo e lastimo, principalmente, que tal seja feito pelo líder mais medíocre que a Alemanha teve nos últimos 50 anos.
Onde estava o sentido crítico desta cinzenta contabilista de Leipzig quando nos últimos seis anos sucessivos líderes do PSD pré-anunciaram o desastre decorrente da governação socialista?