Corpo do artigo
Para o presidente do Brasil, a diferença entre verdade e mentira existe apenas na sua vontade. A facilidade com que declara o absurdo é total, fazendo da política uma atividade de casino, uma aposta na sorte de haver quem acredite em qualquer coisa. Bolsonaro desafia o cargo que ocupa porque rasurou completamente o código deontológico a que está vinculado. Não se apresenta como presidente de todos os brasileiros (intimidando e investindo sobre aqueles que se lhe opõem política e ideologicamente) e não se vinculou à verdade, elementar missão que lhe cumpre.
Acaba de mentir sobre a jornalista Míriam Leitão, que se viu, junto com o marido, o sociólogo Sérgio Abranches, desconvidada para a 13.a Feira do Livro de Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, por não haver como zelar pela sua segurança. A retirada do convite ao casal é claramente uma censura das suas vozes não alinhadas com o Governo, o que levanta a hipótese ascorosa de transformar os encontros literários em debates sem contraditório. O que levanta a hipótese ascorosa de se transformarem os escritores em figuras mudas, de expressão decorativa, sem verticalidade alguma, sem préstimo.
Jair Bolsonaro, desprezando a ideia de censura ao casal, acrescentou duas acusações graves: que Míriam teria feito parte da luta armada contra a ditadura instalada em 1964, e que ela mente ao dizer que foi torturada quando presa pelo regime já na década de 1970.
Ser contra a ditadura não é ideologia, é decência. Míriam Leitão foi ativista, usou as paredes para palavras de ordem contra a opressão. Na consciência dos bons, fez o decente. Foi apanhada, torturada, revelou a valentia de, levada a pronunciar-se, prestar depoimento no sentido da denúncia. Denunciou o que tantos precisaram de calar para sobreviver, e sobreviveu. Hoje, destituir uma vítima de tortura do direito elementar ao testemunho é profundamente indigno. A luta política tem de exercer o contraditório sem que arrisque tanto. Porque o passo dado já é pura desumanização. Não haverá mundo para ser conquistado se sobrarem apenas bocas necrófagas. Bichos ávidos que não se detêm perante o moribundo. Como vejo o escritor emudecido: um moribundo.
Enquanto escritor, repudio completamente o gesto que, afinal, vulnerabiliza especificamente Míriam Leitão e Sérgio Abranches. A retaliação contra os dois é contra todos. É modo de avisar a todos. O que não pode ser aceite. Por mentira alguma se pode trocar o testemunho das vítimas, por mentira alguma se pode trocar a expressão de todas as artes, por mentira alguma se pode trocar a liberdade de cada um.
*Escritor