A Santa Casa da Misericórdia de Braga completou esta semana 500 anos. O programa de celebrações incluiu uma sessão solene com a presença do Presidente da República e um congresso histórico, justamente dedicado ao extraordinário percurso desta instituição, em cuja sessão de abertura participei em representação da Universidade do Minho. Chegado ao fim de semana, sinto-me convocado para uma reflexão sobre a relevância que, no passado e no presente, as Misericórdias mantêm em Portugal.
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A origem do movimento das Misericórdias data de 1498, ano em que a rainha D. Leonor, viúva de D. João II, fundou a Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia, com sede na Capela de Nossa Senhora da Piedade da Sé de Lisboa. A sua ação inicial era protagonizada por cem membros que ajudavam os pobres, os presos e os doentes, no quadro do seu compromisso fundacional, as chamadas 14 Obras de Misericórdia.
Para quem estudou o contexto português de finais do século XV e do século XVI, fica claro que se tratava de uma nação plena de desequilíbrios, que canalizava uma parte substancial dos seus recursos e vontades para as descobertas além-mar. Uma grande maioria da população carecia de condições para fazer frente às dificuldades da vida, sobretudo em períodos de maior debilidade como a doença. Em resposta a esta necessidade, as Misericórdias foram-se espalhando por todo o território português, incluindo os arquipélagos dos Açores e da Madeira e os territórios ultramarinos. O seu papel, por exemplo, nas pestes quinhentistas é bem revelador da oportunidade da sua criação.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tornou-se, como tudo em Portugal, a maior e mais importante, ao ponto de passar a ser controlada pelo Estado a partir do início do século XX e de usufruir do monopólio da exploração dos jogos sociais, canalizando parte das respetivas receitas para a sua missão assistencial.
A organização do Estado obviamente evoluiu ao longo destes cinco séculos, constituindo-se os clássicos sistemas de criação de riqueza, de captura de parte da mesma, em sede de contribuições e impostos, de redistribuição e de disponibilização de serviços necessários à garantia de condições mínimas de vida e de dignidade. Esperar-se-ia que a construção de um Estado organizado substituísse paulatinamente o protagonismo assistencialista das instituições de solidariedade oriundas da sociedade civil. No limite, o papel destas seria complementar ao Estado, mediante contratualização ou, então, seriam mobilizadas em períodos de exceção como guerras ou outras catástrofes.
A verdade é que, no Portugal de hoje, a articulação entre sistemas de criação, taxação e redistribuição de riqueza é mais do que imperfeita, o que faz emergir, de novo e em força, o papel crucial das Misericórdias. Nos encontros dos provedores das Misericórdias de há quinze ou vinte anos, era comum ouvir-se "na minha freguesia não se passa fome". Hoje, a situação é bem diferente, razão pela qual as Misericórdias de todo o país relançam as cantinas sociais.
O relatório do Observatório das Famílias e das Políticas de Família mostra que, entre 2009 e 2012, mais de meio milhão de crianças e jovens perderam o direito ao abono de família, colocando ainda mais pressão sobre o orçamento das famílias, sobretudo as mais numerosas. As prestações sociais têm vindo a diminuir, ao ponto de a despesa do Estado para apoio económico das famílias se situar em 1,5% do PIB, quando a média da União Europeia é de 2,3%.
Por mais impostos que paguemos - veja-se a surpresa de tantos pensionistas que, estupefactos, perceberam que em novembro receberam menos do que descontaram -, o deficiente sistema de redistribuição continua a alimentar a mole de excluídos, convocando a sociedade civil, independentemente da sua inspiração religiosa ou outra, para se organizar e colmatar esta vergonha nacional. As Misericórdias são bem exemplo disso. Assim o foram na monarquia e na ditadura, assim o são na democracia.