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Algemado, tatuado, musculado, contrariado, entrou Nuno no tribunal. A polícia tinha-o ido algemar cedo a casa, no bairro: há uma semana, faltara à primeira sessão do seu julgamento. Nuno, um homem de boas respostas sem saída:
- Levei vacina... Tive uma pneumonia e uma anemia. E pensei que isto era em Outubro mais tarde.
Nuno prescindiu de ouvir a acusação. A juíza, então:
- Confessa os factos, isto corresponde à verdade?
- Sim, corresponde à verdade.
- Então porque é que tinha isto consigo?
- Isso há aí um equívoco. Aquilo não era meu.
Suspiro da juíza. Os suspiros da magistratura variam de intensidade, mas sempre interessantes. Querem, por exemplo, dizer "pensava despachar isto, que era uma limpeza, mas afinal..."
- Então, se calhar, não corresponde à verdade, disse a juíza.
- Não, não. Quando apareceu a polícia... eu moro ali naquele bairro. Eu tinha-me chateado com dois amigos meus por causa da dívida de uma mota, que eu quero pagar, e como tomo medicamentos para os nervos, eu sou medicado no centro de saúde e no hospital de Santa Maria e fui ao jardim com um rapaz que ...
- Olhe, não se perca nos pormenores, que não são importantes. Eu quero é perceber o que é que aconteceu, "tá bem? O resumo da sua vida depois a gente já vai falar sobre ele.
- Eu estava ali a descansar no jardim, é uma praça antiga...
- Então e os senhores agentes quando chegaram ao pé de si, o que é que fizeram?
- Ahhh, que eu estava detido, que eu estava preso, aparecem com uma arma na mão e...
- Então!, interrompeu a juíza, mas não há uma varinha de condão, nem há um saquinho mágico...
- Veio um agente pela escada... Vêm sete ou oito, ou 12 agentes, não sei, aquilo foi... entraram por todo o lado.
- Pois, foi uma força de intervenção rápida.
- Um dos agentes veio do meu lado esquerdo com a arma na mão, a dizer que aquilo era meu, é teu, é teu!, mas não era.
- Então quando chegaram os senhores agentes, o senhor não tinha a arma atrás de si. Não corresponde à verdade...
- Não, não, não, respondeu Nuno.
- Mas que interesse é que tinham os senhores agentes em mentir? Nós tivemos aqui os agentes, um deles contou que em momento anterior tinha havido a denúncia de uma ameaça com arma de fogo, dando a descrição de uma pessoa que correspondia ao senhor pela roupa que vestia, e quando chegaram, o senhor estava a tentar esconder alguma coisa atrás das costas e, quando foram verificar, tinha ali uma caçadeira de canos serrados!
- Não estava ao pé de mim.
- Tem alguma coisa contra estes agentes, há alguma coisa que estes senhores agentes tenham contra si?
- Sotôra, eu não vou por esse caso. Eu vou falar a verdade, porque tenho que falar a verdade.
- Não, não tem que falar a verdade, o senhor é o único que não tem de falar a verdade.
- Eu sempre nasci ali sotôra... havia outro rapaz...
- E porque é que o abordaram a si e não a ele?
- Eu até perguntei na esquadra porque é que me levaram a mim e não o levaram a ele.
- Estou esclarecida, ressuspirou a juíza.
E virou-se para a procuradora, que também não quis procurar nada ao homem, estava bem esclarecida. E o resto do julgamento foi de facto o resumo da vida de Nuno, e foi como colocar num estendal de rua as suas ceroulas, os filhos daqui e dali, as pensões de alimentos esmifradas ao cêntimo, a fuga aos impostos numa oficina de motas clandestina - justificada por já estar com muita idade, aos 40 anos - e a juíza aqui não suspirou, gritou:
- O senhor não é mais velho do que eu!
E, para acabar, o grande mistério, a dúvida visível nas tatuagens retesadas do pescoço de Nuno: que estranha doença dos nervos, velhice, anemia, pneumonia, lhe fez crescer ao fundo das costas, como furúnculo, uma caçadeira de canos serrados?
O autor escreve segundo a antiga ortografia