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É impossível imaginar a dor sentida pelos pais de Rui Pedro, que continuam sem saber, ao fim de tantos anos, o que sucedeu ao seu filho, pelo que escrever uma linha que seja sobre o tema exige especial prudência. Mas ainda assim, e agora que o tribunal decidiu pela absolvição do único arguido no caso, não deixam de se justificar uma série de perplexidades e algumas questões.
O papel que foi assumido pela comunicação social ao longo do processo que, dando natural relevo ao julgamento, acabou por contribuir para um julgamento popular paralelo, ou sobreposto, ao do direito. O jornalismo das causas, feito de convicções pessoais, pode decerto vender papel mas não deixa de ser censurável.
Valerá, também, a pena perguntar se fazia sentido reabrir um caso que já tinha sido investigado e arquivado pelo Ministério Público. Sendo verdade que a família clamava, compreensivelmente, por justiça, e levantava dúvidas sobre a investigação já feita, novo julgamento só se deixaria justificar perante factos supervenientes e relevantes. Ora, uma vez que havia razões para admitir que uma das testemunhas pudesse contribuir positivamente para o apuramento dos factos, o que apesar de tudo não se veio a concretizar, a nossa justiça terá decidido com acerto.
Pode ainda discutir-se a estratégia da defesa ao ter optado pelo silêncio do arguido, mas este é um direito que lhe assiste, e é livre de exercer, tanto mais que ele já fora ouvido em sede de inquérito, e por várias vezes. Poderá, isso sim, questionar-se se, depois disso, deveria ter dado uma entrevista a uma televisão, mas esse facto poderá ser explicado pela necessidade de se defender, já não da acusação em tribunal, mas da condenação na praça pública a que tem estado sujeito.
É esta aparente assimetria entre o julgamento do tribunal que absolveu o arguido, e o julgamento popular que o condenou, que constitui tema desta crónica. Não conheço todos os elementos do caso e do processo, mas não tenho razão para duvidar de que a investigação dos factos foi feita de forma exaustiva, e recorrendo a todos os meios disponíveis. Também não tenho dúvidas de que os juízes decidiram com imparcialidade e proferiram a sua sentença segundo os acordes da justiça.
De facto, a justiça não pode ser feita em resposta aos anseios e convicções íntimas das vítimas ou, mais grave ainda, em função de um sentimento popular de justiça. A justiça popular, como se sabe, não é cega, surda ou muda. Guia-se por intuições, por sentimentos, por factos desconexos. Mais do que isso, não entende que é a acusação que tem de provar os factos que invoca e que, na dúvida, o juiz deve sempre decidir a favor do arguido. E, neste caso, não foi possível esclarecer inequivocamente os factos, nem o julgamento permitiu comprovar sem dúvidas a prática do crime.
Ainda assim, o sistema judicial sai, mais uma vez, desacreditado. Como o tribunal reconhece na sentença, o julgamento foi uma perda de tempo, o que era quase inevitável, na medida em que decorreram 14 anos entre o dia do desaparecimento e o julgamento. Só por mero acaso haveria provas novas e conclusivas.
Infelizmente, a família de Rui Pedro continuará a não saber o que sucedeu naquele dia. Continuará a não saber se o filho está vivo, a não conhecer o seu paradeiro, a ansiar pela verdade, e a clamar por justiça. Este tão penoso mistério ir-se-á manter, até que um dia se consiga descobrir a verdade que, muitas vezes, e sobretudo nestes casos, surge muitos anos depois. Ao contrário dos testemunhos, dos processos, das investigações, das convicções, ela não se apaga com o tempo. Por isso, espero que extintos os fumos da fogueira inquisitória que esteve acesa à porta daquele tribunal, um dia se saiba a história verdadeira, e a luta daquela Mãe possa vir a ser recompensada com o reencontro com o filho ou, se isso não for possível, pelo menos com o fim desta pesada incerteza. Espero também, o que sei que já não lhe aproveita, que os desaparecimentos de menores passem a ser tratados logo nas primeiras horas com outro cuidado e com outro zelo.