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Por várias vezes, evoquei neste espaço figuras da mitologia grega. Hoje, vou falar novamente de mitos, mas de mitos nacionais. Isto a propósito de certas declarações do primeiro-ministro e de outros membros do Governo, que mistificam factos passados, presentes e futuros.
Quanto ao passado, o PM referiu-se recentemente ao memorando com a troika, afirmando: "Quando eu o recebi, o programa não era cumprível. As contas estavam mal feitas e não fui eu que as fiz", "a perspetiva associada ao memorando era de que partiríamos de 2010 de um défice que podia rondar entre 7,5% e 8%". Este é um mito para esconder os erros que cometeu invocando erros que não existiram. O défice calculado pelo INE para o ano de 2010, e que consta daquele memorando - que teve o acordo do PM, então líder do partido -, era de 9,1% do PIB (em setembro de 2011, foi revisto em alta por causa do défice que a Madeira escondeu). Quanto ao objetivo de défice para 2011, ele era de 4,6% do PIB no tão falado PEC4, mas o memorando aliviou a exigência ajustando-o em alta para 5,9%. Se esta meta era incumprível, porque a assumiu o Governo no Documento de Estratégia Orçamental apresentado em agosto de 2011? Porque a reafirmou em setembro? Porque a manteve em outubro na proposta de orçamento então apresentada?
Quanto ao presente, o Governo reclama que a descida das taxas de juro e a recuperação da economia se deve ao invocado sucesso do programa com a troika. Outro mito. Esconde que, ao querer fazer mais do que o previsto no programa, arrastou o país para a recessão mais longa dos últimos 70 anos, e a mais profunda dos últimos 40. Esconde que essas melhorias se devem principalmente à política do BCE, que baixou as taxas de juro para mínimos históricos e resolveu injetar montantes avultados no sistema monetário. Se tais melhorias se devem ao sucesso da política seguida, como explicar que a Grécia, que falhou o seu programa, tenha tido uma descida maior nas suas taxas de juro e uma recuperação mais forte no seu crescimento?
Quanto ao futuro, o Governo acena com medidas simpáticas. Por exemplo, para seduzir a função pública faz gala em anunciar a reposição dos cortes salariais. Outra mistificação! Recordo bem que foi o Tribunal Constitucional que obrigou o Governo, que reagiu muito mal, a fazer essa reposição.
Há dias, ao ouvir declarações do Governo a repisar estes mitos, exclamei "dizer isto é fazer como os cucos!", o que levou o meu neto a perguntar-me: "Avô, o que são cucos?". Lá lhe expliquei que os cucos são aves que, ao cantar, emitem um som que se assemelha ao seu nome. Mas, além do mais, têm uma característica invulgar: gostam de pôr os ovos nos ninhos das outras aves.