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Há poucos anos, a invasão do Iraque e a entrada das tropas americanas em Bagdade foram pautadas durante dias por episódios hilariantes, que serviram para amenizar a tragédia que se vivia hora a hora naquele escaldante território. Durante a meia dúzia de dias que durou o cerco à capital, diariamente, um homem gorduchinho, calvo, com ar bonacheirão, fazia conferências de Imprensa sobre o "estado da guerra". Dia após dia eram descritas as vitórias estrondosas do exército iraquiano. Ao terceiro ou quarto dia, com Bagdade completamente sitiada, com as colunas de fumo dos bombardeamentos a fluírem por todo o lado, o homem persistia naquele patético e convicto discurso.
Fica para a história da tragicomédia universal a última ronda com os correspondentes estrangeiros, no último piso de um hotel, com os blindados norte-americanos à vista das câmaras. Face aquela evidência visual o homem persistia na descrição das gloriosas façanhas dos homens de Saddam e parecia acreditar que o que estava ali a meia dúzia de centenas de metros era uma ilusão de óptica provocada pelo calor tórrido do deserto.
Aquela aparente, ou talvez real, crença quase religiosa, valeu-lhe ser um dos únicos ilibados nos rigorosos julgamentos a que foram sujeitos os principais dirigentes daquele desumano regime.
O homenzinho, Mohammed Saeed Al-Sahaf, ministro da Propaganda de Hussein, veio-me à memória nas últimas semanas, face ao comportamento do primeiro-ministro de Portugal.
Líder de um governo com seis anos de percurso, governante quase que ininterruptamente desde 1995 (o português que mais anos de governante executivo nacional tem desde 1974), entrou numa galopada autista só comparável à do bom Al-Sahaf.
O défice orçamental gigantesco é irrelevante e de exclusiva culpa da crise do crédito imobiliário de além-Atlântico.
A dívida externa assustadora decorre dos malvados parceiros comerciais que têm o desplante de produzir e vender barato.
As taxas de juro que oneram a nossa dívida são asfixiantes e colocam em causa o nosso futuro porque os malvados dos especuladores nos querem tramar.
A senhora Merkel é uma tratante insensível, as agências de rating avaliam negativamente as nossas prestações futuras porque são ignorantes e mentirosas.
Os portugueses têm de pagar portagens em todas as auto-estradas por culpa do PSD, vêem as grandes obras adiadas por causa de Passos Coelho e até o Hospital de Gaia - prometido há uma década - está parado porque os sociais-democratas não permitem a sua construção.
O Governo anda em permanente sobressalto no Parlamento porque os ignorantes dos eleitores não lhe deram uma merecida maioria absoluta.
Ao mesmo tempo, tal Al-Sahaf, todos os dias dá boas novas que contraditam a realidade que está à vista de todos. Vai ao Marão visitar o túnel em construção pela quarta vez em poucos meses. Vai à Salvador Caetano olhar pela terceira vez para o mesmo autocarro eléctrico: Organiza e paga o quinquagésimo congresso de empresas exportadoras. Inaugura anexos de escolas, dispensas de cantinas e telheiros de recreios de jardins-de-infância: cada número que servilmente, de véspera, alguns organismos públicos lhe facultam, dão para festas e anúncios pomposos e não contraditáveis.
No entanto, à mesma hora, os juros da nossa dívida atingem valores recordes, os jornais especializados falam da inevitabilidade de uma intervenção externa, o país definha e morre de desesperança.
A grande diferença entre José Sócrates e o referido ex-ministro da Propaganda é que o pobre homem parecia acreditar no que dizia e, sinceramente, já não creio que seja esse o caso de José Sócrates.
A outra diferença é a que decorre de vivermos em democracia, e de em democracia são os votos e não os tanques que resolvem estes problemas.
Este Governo já não tem legitimidade para governar. Porque está a desenvolver um programa que contraria em tudo aquele que, mesmo que minoritariamente, foi sufragado pelo eleitorado (veja-se o recente desplante de deixar cair a regionalização, matéria que ilustra todos os seus programas eleitorais). Porque não havendo condições conjunturais para aprovar uma moção de censura na Assembleia da República, a verdade é que todos os partidos, a larga maioria dos parlamentares, censuram o Governo parcelarmente - e aritmeticamente o todo é sempre a soma das partes.
Vem aí o grande leilão de dívida da Primavera e vem aí um novo mandato presidencial. Estou crente que é impossível o presidente da República, com a sua inequívoca lucidez, não entender que cada dia que passa mais se afundam os alicerces do regime e da crença necessária a uma vida democrática escorreita.