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Estou a escrever muito e bem. Se dizê-lo agoira ou espanta o mojo, mais valia fechar a boca. Mas isto assemelha-se à paixão, que não é silenciosa. Por outro lado, eu não sou um homem supersticioso, nem de resto me parece que faça mal sujar um pouco a escrita, que é sagrada, com a profanidade do optimismo.
Até por não ser literariamente optimista, enquanto estou neste oásis posso dizer como um personagem de Tolstói em “Guerra e Paz”: “Boa vai ela, a cavalgada”. Se continuar a cavalgada, dentro de alguns meses acabo o meu novo romance.
Antes de fazer a Estrada Nacional 2 a pé, anunciei-o a muita gente. Nunca pensei que conseguisse, mas o anúncio público fez-me ter vergonha de desistir. Assim, ao dizer que estou a escrever muito e bem, talvez continue muito e bem a escrever. É uma batota sem o ser.
Se desistir, o único que perde sou eu. Perco a vida espiritual de um livro, na qual a minha vida pequena se engrandece. Desaparece a sensaboria no quotidiano, já que o imaterial é sempre mais importante do que o material.
Tudo se torna mais pequeno para ser verdadeiramente grande. Os meros incómodos permanecem pequenos na sua lura, e tudo o que passa por mim pode acabar grande no livro. Até as palavras dos outros, nos livros alheios, excitam a minha escrita. Mal consigo ler um livro sem pegar na caneta para continuar o meu.
John Steinbeck escreveu “As Vinhas da Ira” em seis meses, de Junho a Novembro de 1938, enquanto escrevia também um diário onde falava da mecânica da ficção, dos contratempos e do desejo de ir passear, mais forte do que o desejo de escrever. Todos os escritores falam das mesmas coisas de maneira diferente.
De maneira que insisto no meu livro, que não tem a estatura de Steinbeck e de tantos outros, mas que ainda assim me parece bom, e no qual alguns momentos - espero eu - têm algo que não me pertence unicamente.
Nunca o diário prejudicou Steinbeck, nem ele achou que juntar mais algumas palavras à escrita de cinco mil palavras por dia (um feito) fosse gasto de recursos. Não o imito porque não sou Steinbeck nem ninguém semelhante, mas bem me apetece a alegria, que é um ensejo belo e raro no meio das ficções que estão a ser escritas.
De resto, desculpem lá, isto é só uma crónica com o barulho de um anúncio feliz ou, na pior das hipóteses, com o barulho ridículo que fazem as galinhas quando põem um ovo.
O autor escreve segundo a antiga ortografia