As medidas anticrise que o Governo anunciou esta semana traduzem tudo o que o primeiro--ministro vinha negando praticamente desde que foi eleito para segundo mandato.
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Já se percebera que Sócrates estava há muito a esticar corda à espera que o tempo trouxesse um milagre que o aliviasse de medidas tão duras, mas ele deve ainda uma explicação sobre se essa demora o obrigou agora a medidas mais duras do que seria necessário se agisse mais cedo e, sobretudo, deve explicar se o país pagou mais pela sua demora. O mal é Sócrates não explicar as coisas como elas são. A causa das coisas, destas coisas pesadas que caíram em cima de todos nós, a causa da factura que temos para pagar não está na má governação do PS. Mas está aí também, na medida em que adiou medidas que hoje sabemos eram inevitáveis. A causa maior está numa crise internacional espoletada por banqueiros sem escrúpulos e está também em sucessivos governos que nos puseram a viver muito acima das nossas possibilidades. Dito de outra maneira, a culpa do estado a que o nosso pais chegou é também de muitos economistas que despudoradamente desfilam nas nossas televisões apontando o dedo aos que hoje estão no poder e que passam incólumes diante de responsabilidades que também acumularam porque contribuíram para o nosso endividamento, porque persistiram em pôr-nos a viver acima das nossas possibilidades, numa altura em que se pedia emprestado e o prazo de pagamento ficava fora do horizonte. Isso acabou. Foi isso que Sócrates percebeu e foi isso que o obrigou a tão grande inflecção.
Daniel Bessa, há dias, na Guarda, dizia estar aliviado porque "alguém confessou um grande pecado e está em paz". No seu subconsciente estaria obviamente a figura do primeiro-ministro, obrigado pela força das circunstâncias a apontar um caminho cheio de escolhos. Tenhamos como certo: com o anúncio destas medidas todos nós viveremos de uma maneira diferente e vai demorar muitos anos até que os nossos filhos e netos tenham um nível de vida semelhante ao que conseguimos ter, apesar de todas as dificuldades que já atravessámos. Morreremos da cura? Não, não morreremos. Ninguém morre por cumprir as suas obrigações. Mas a verdade com que teremos de viver a partir de agora vai doer a muita gente. Desde logo aos que menos têm, como sempre acontece. Depois, aos funcionários públicos, primeiras vítimas de uma modernização administrativa que não está feita, vítimas de um monstro que o Estado não consegue já pagar, ainda que muitas vezes coniventes com a grandeza, e sobretudo com a ineficácia, desse monstro. Como há dias aqui no JN escrevia Alberto Castro, eles serão, agora, os primeiros a desejar a reforma do sector público do Estado. Vítimas seremos ainda todos nós, desde logo pelo que vamos pagar a mais, mas também pelo arrasto que algumas medidas previstas para o sector público acabarão por ter para o sector privado. Como sempre, nem tudo é mau se soubermos aproveitar a crise para as reformas que são inadiáveis.
Falta que o Governo a todos os cortes anunciados junte a eliminação de alguns serviços e institutos públicos, por evidente inutilidade e redundância, e que aponte estímulos que permitam algum crescimento económico. Falta também que os partidos, todos os partidos, tenham a coragem de cortar no número de deputados - dos 230, que são o máximo previsto na Constituição, para os 180 também ali previstos e que parecem adequados à nossa dimensão - e começar a estruturar uma reforma administrativa que diminua drasticamente o número de autarquias, concelhos e freguesias, tornando a sua gestão mais racional. Esse é um caminho que teremos de tomar, embora não esteja aí ninguém à nossa porta para no-lo impor como acaba de nos ser imposto o pagamento do que gastamos e devemos. É, apenas, do mais elementar bom senso começar a pensar nisso.
P. S.: Passos Coelho faz mal em querer esperar pelo Orçamento para saber se o deixa passar. Deveria deixá-lo passar em nome do interesse nacional e deixando bem claros os pontos em que diverge. Se vai esperar e depois abster-se (como obviamente fará) ficará também responsável pelo que acontecer. A pressa que no PSD alguns dirigentes têm em chegar ao poder está a fazê-los percorrer maus caminhos. A seu tempo, Sócrates saberá aproveitar esses erros.