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Os mortos, os mortos dos outros, já não nos sobressaltam, mesmo que eles nos caiam aqui ao lado, ou até aqui dentro. Não são vivos, não eram vivos, nem sequer estavam vivos. Estavam na televisão, e é tudo o que basta saber, porque a TV não sente nem lembra, só mostra e exibe em série, e nas séries a morte é exibição limpa, inconsequente e sem consequências. Há todos os dias mortos e mortes, em todos os canais. Bisturis e balanças, que cortam e pesam a carne, que transformam a morte de uns na sorte de outros. A morte é burocracia, é carimbo e etiqueta nos pés inertes, sem cara nem cheiro. As autópsias viraram entretenimento aceite sem reservas, que nos elimina a sensibilidade a tudo e todos. Que nos anestesia por condicionamento diário, aplicado em horário nobre e a todas as outras horas.
Assim segue a Europa, sem notar que em cada morte nas notícias há uma pessoa que morre. E os mortos, os mortos dos outros, já não causam angústia, mesmo que eles nos caiam à nossa porta. Que queriam os invisíveis burocratas europeus, sempre glorificados e invisíveis, que advertiram e ameaçam a Grécia por não controlar melhor as suas fronteiras? Que os gregos saíssem para o mar e abrissem fogo sobre os refugiados? Que os deixassem morrer na fronteira, em direto na TV?
É provável, mesmo assim, que poucos se inquietassem. Ou sequer que muitos notassem.