A Ucrânia tem-nos ocupado de forma quase obsessiva. Depois da cartada de mestre da Rússia na Crimeia, as análises logo desenharam cenários catastróficos, colocando-nos, no limite, à beira da Terceira Guerra Mundial. Que fique claro: sim, a Rússia interveio militarmente, embora ainda não tenha havido confronto bélico; e, tecnicamente, a sua presença armada na Crimeia é qualificável como ato de agressão.
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Contudo, e não creio que se trate de um paradoxo, a jogada russa "contribuiu" para que os envolvidos fossem obrigados a agir politicamente. Depois de uns espasmos belicosos desastrados (a intervenção inicial do secretário de Estado norte-americano, ao género de John Wayne, é a esse título exemplar), a "questão" ucraniana está a ser negociada. Pelos Estados Unidos e pela Rússia, mas também - e, essa sim, é uma novidade - pela União Europeia.
Para a UE, chegou o momento de mostrar se tem capacidade política para gerir de forma satisfatória uma situação péssima para que contribuiu, gostemos ou não de o ouvir. Gostemos ou não de o recordar, tornou expectável a reação russa e atuou de forma parcial quando, entre outros erros, promoveu a celebração de um acordo entre os manifestantes de Maidan e o então presidente Ianukovitch enquanto, em simultâneo, patrocinava a queda deste.
ARússia só conseguiu negociações quando fez ouvir as botas dos seus soldados depois de aguentar sucessivas humilhações públicas, levadas a cabo de forma imprudente e arrogante. E não é preciso ser "anti-imperialista" ou "extremista" ou "anti" qualquer coisa para chegar a esta conclusão. Henry Kissinger, esse perigoso comunista e célebre antiamericano, di-lo num artigo notável no Washington Post e, em algumas dezenas de linhas, dá uma lição daquelas a muitos estrategas de pacotilha que por aí pululam.
É certo que a ocupação da Crimeia clarificou. Mas também não é menos certo que, com essa "clarificação", quem mais perdeu foi a Ucrânia (tratada por todos, sem exceção, como um brinquedo apetecido). A aprovação pelo Parlamento da Crimeia de uma decisão de imediata integração na Rússia e a realização de um referendo sobre o assunto já no próximo dia 16 colocam em risco, no plano dos factos, a integridade territorial ucraniana. Mas, pior: quanto mais este processo avançar mais vai ser difícil a Putin recuar sem perder a face (mesmo que o queira, e não sei se o quer).
Então, e agora? Um ponto a favor de uma possível solução é a circunstância de as novas autoridades de Kiev, de forma surpreendente (pela positiva) terem tido o recato de não dar qualquer pretexto à Rússia para usar a força em concreto. Nesses termos, seria crucial que, de imediato, se procurassem criar as condições que tornassem a presença na Rússia cada vez mais difícil de justificar. Assim, e pela ordem: o governo de Kiev teria que afastar de vez a possibilidade de incluir ultranacionalistas e deveria representar todos os ucranianos, coisa que nunca verdadeiramente aconteceu no passado. Deveria, além disso, aceitar alterações à Constituição que se traduzissem no reforço da autonomia da Crimeia e, por que não, na aceitação de alguma autonomia a outras regiões do leste ucraniano; deveriam, finalmente, assumir o compromisso (verificável internacionalmente) de que doravante não só aceitavam o Russo como língua oficial como também a especificidade da parcela russófona da sua população; e, finalmente, garantir a proteção de outros grupos menores, como os tártaros.
Os russos, esses, teriam de aceitar o regresso da tropa às casernas, nos termos exatos do acordo em vigor entre si e a Ucrânia.
Não se faça isto ou algo de similar, e a Rússia vai ficar na Crimeia e torná-la de facto (com mais ou menos sanções) em território seu. Já agora: evite-se falar demasiado na "sagrada" integridade territorial da Ucrânia ou na "proibição" da secessão. Porque a Rússia responderá: 1999.
1999, perguntarão? Sim, quando interviemos militarmente no Kosovo e afirmámos que sempre respeitaríamos a integridade territorial da Sérvia. Para, imediatamente, promover a sua amputação.
