O Egito continua a ser uma caixinha de surpresas. Por ali passou aquilo a que chamaram, com grande sentimento poético mas pouca compreensão da realidade, a "Primavera árabe". A dita "Primavera" também passou pela Líbia, hoje de rastos e a ferro e fogo, e terá tentado passar pela Síria, com a desgraça, violência brutal e catástrofe humanitária que todos conhecemos.
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Mas, no Egito, alguns tiveram uma fé especial nos ventos que, quase sem ninguém prever, fizeram chegar, primeiro o tumulto, depois a festa, depois um novo poder. O país, potência da região, foi governado durante quase 30 anos por Hosni Mubarak, que subiu ao poder na sequência do assassinato de Anwar el Sadat.
Governou com mão de ferro, apoiado sem falhas pelo poder militar e judicial. Foi chamado faraó do século XX porque, realmente, ninguém conseguiria descrever o Egito de Mubarak como democracia à luz de alguns princípios em que todos se reconhecem. No entanto, político habilíssimo, Mubarak sabia a importância do Egito. Sabia o peso fundamental que, naquela região, tinha para os seus aliados ocidentais, num contexto geopolítico que viveu a última década da Guerra Fria, depois a fase eufórica em que se acreditou numa nova sociedade internacional, depois o peso esmagador dos Estados Unidos e depois o 11 de Setembro e o terrorismo transnacional. Era duro? Era, permitia-se responder: num Mundo ainda mais duro e com tantas ameaças, num país de uma tal complexidade e tão conflitual, só podia sê-lo. Assim falava quem, note-se, escapou a seis tentativas de assassinato.
Em 2011, farto de tanta bondade, o seu povo rebelou-se. Os aliados foram-se, a começar pelos Estados Unidos. Nessa altura, as manifestações gigantes na Praça Tahrir - traduzido à letra, Praça da Libertação - ocuparam as televisões, levaram às proclamações mais exaltadas. Mubarak tinha de cair do seu pedestal. E caiu, demitiu-se. Caiu e demitiu-se, no essencial, porque os militares, seu último sustentáculo, perceberam que a situação já não era sustentável.
Logo a seguir, foi preso, e acusado de ter sido o mandante das mais de 800 mortes que se verificaram naqueles dias de violência e contraviolência. As imagens de Mubarak, prostrado e aparentemente incapaz durante as sessões do julgamento, correram Mundo. Foi condenado a prisão perpétua. Foi condenado, também, por corrupção.
E lá subiu ao poder o novo poder dos Irmãos Muçulmanos, liderados por Mohamed Morsi e inimigos figadais de Mubarak, porque sentiram na pele, como provavelmente mais ninguém, o que podia ser a ira do faraó. Prometeram democracia, para não atemorizar ninguém, ganharam por pouco, não foram nada democratas. E pouco ficaram no poder: Morsi foi presidente do Egito entre junho de 2012 e julho de 2013, até ser por sua vez derrubado pelo aparelho militar (sempre ele, sempre ele...). O poder é, desde então, exercido por el Sisi. Primeiro, pela força das armas. A seguir, através de eleições muito pouco livres.
EMubarak? Bem, menos mal. Em janeiro de 2013, a condenação a prisão perpétua foi anulada, devido a vícios processuais os mais variados. E, agora, sabe-se finalmente qual foi a decisão no segundo julgamento. Foram retiradas todas as acusações. Todas, sem exceção. De acordo, ainda ficou de pé a condenação a 3 anos de prisão de corrupção mas, muito em breve, Mubarak será um homem livre. Com 86 anos e debilitado, a liberdade será de pouca fruição efetiva. Mas este é um destino judicial fascinante. Porque os crimes, a sua prática, a inocência e a culpabilidade foram variando, a um ritmo acelerado, consoante ia mudando o poder político.
O poder judicial egípcio, ninguém o duvide, é mais flexível do que uma dançarina do ventre. Tanto condena Mubarak quanto, chegado el Sisi ao poder, condena à morte ou a prisão perpétua resmas de membros dos Irmãos Muçulmanos ou de "inimigos" do Estado.
Hoje, o poder no Egito tem uma mão ainda mais férrea do que a que tinha Mubarak. Que o diga Mohamed Morsi, na prisão à espera da sentença no seu julgamento, que vai certamente ser muito pesada. O Egito vive, desta forma, uma curiosa circunstância: todos os seus ex-presidentes ainda vivos (Morsi e Mubarak) estão na prisão. Mas Mubarak, é quase certo, vai estar cá fora muito antes, a rir-se de quem lá fica. Não é faraó quem quer, é quem pode.