Por razões as mais variadas, há um conjunto de actividades que, nos tempos recentes, despareceram ou, para sobreviver, tiveram de se reajustar. Nas indústrias que recorriam mais intensivamente à mão-de-obra, quem ficou parado foi cilindrado pelas empresas de uma miríade de países com salários mais baixos do que os nossos. As mercearias tradicionais vão desaparecendo enquanto as lojas gourmet se multiplicam. Muitas livrarias encerraram vítimas, diz-se, do comércio electrónico e dos ebooks, mas as que sobreviveram parecem prosperar, ajudadas por estratégias as mais variadas de que o Bairro dos Livros, no Porto, é um bom exemplo. Os jornais procuram reinventar-se para fazer face à instantaneidade das notícias online. Os cafés tradicionais deram lugar a agências bancárias, mas parecem estar de volta sob formas de espaços mais variados e sofisticados.
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Releia-se Camões "(...) todo o mundo é composto de mudanças/(...) Do mal ficam as mágoas na lembrança/ E do bem (se algum houve) as saudades/(...) E afora este mudar-se cada dia,/Outra mudança faz de mor espanto,/Que não se muda já como soía". Mais de 400 anos passados, ainda há quem o não entenda, persistindo no equívoco de ignorar as mudanças que à sua volta vão acontecendo como se, ao fazê-lo, pudessem evitar a sua ocorrência. Nos negócios quem assim (não) age tem a sorte traçada. Já nas actividades não mercantis o engano do estado de negação arrasta-se, protelando os ajustamentos ao ponto de poder originar perigosas roturas sociais.
O chamado Estado social é, nos seus fundamentos, uma expressão da ideia de justiça social ínsita nos valores éticos sedimentados, ao longo dos séculos, na Europa. À liberdade e igualdade juntaram-se a protecção e a inclusão, como forma de garantir o primado da dignidade da pessoa humana. A sua concretização operacionaliza um outro princípio fundamental, o da solidariedade (interpessoal e intertemporal). São seus inimigos os que sobrepõem o princípio da liberdade individual a qualquer outro e os fundamentalistas, incapazes de perceber que aquela ideia não tem uma forma única e, sobretudo, estática de realização. Não obstante o ruído sobre a ameaça da deriva neoliberal, a mesma não tem, entre nós, a força que a vozearia apregoa. Em particular, mesmo quando discutíveis, as propostas do Governo estão longe de merecer tal rótulo e, menos ainda, o de coveiras do Estado social. Na verdade, são menos perigosas do que a inércia dos autoproclamados defensores do sistema. A estes, pouco lhes importa que, tomando como referência o momento da concepção do modelo, a demografia se tenha alterado radicalmente ou que a esperança média de vida haja aumentado drasticamente. A pretexto da salvaguarda de pretensos princípios fundamentais querem, em última análise, garantir os seus direitos particulares, sem cuidar de saber dos efeitos sobre a sustentabilidade e, por consequência, os direitos das gerações futuras. Fazem de conta que não percebem que, num modelo como o nosso, são aqueles que continuam no activo que o financiam e que não é possível haver menos a pagar o mesmo para mais terem os mesmos direitos. Assiste-lhes razão na crítica à descontinuidade, ao defraudar de expectativas, à mudança súbita, quando podia e devia ter sido gradual, assim tivesse havido a coragem política. Porém, a satisfazerem-se as suas reivindicações imobilistas, em poucos anos o sistema faliria. Tudo isso é já antecipado entre as gerações mais jovens, fazendo medrar um sentimento de injustiça e revolta capaz de fomentar a adesão a propostas, essas sim, radicais. Vai ser preciso optar.
A coesão nacional é vital para superar a crise actual. A dimensão intergeracional é-lhe essencial. Pelo emprego e pela solidariedade as gerações mais novas têm de ser trazidas e mantidas dentro do processo. Se falharmos, não é só o Estado social que estará em risco.
P.S.: 54 milhões de euros livres de impostos. Ganhos ao jogo. Se fossem rendimentos do trabalho pagariam quase 50%. Assim vamos nós......
O autor escreve segundo a antiga ortografia