Nunca tinha bebido café antes de chegar a Portugal. Uns anos depois, tinha um emprego de 500 euros e muito trabalho, e ganhara o hábito do café. Quando foi de férias à Ucrânia, levava na carrinha mais um filho e um conjunto indispensável: máquina, cápsulas e um garrafão de água, porque a de lá é demasiado calcária. Quando chegou a meio do mês já não havia café, porque familiares e vizinhos aderiram àquele prazer quente e reconfortante.
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Lembrei-me de Vassil, bem disposto e perfeccionista, ao ler as palavras de Silva Peneda na entrevista incluída na edição de hoje do JN. O café tem uma longa história que envolve sempre gente sentada à mesma mesa - ou no mesmo tapete, mais a oriente. Há lugares míticos onde é saboreado há muito tempo, de Istambul a Paris, da Itália a Portugal, voltando ao meu tema.
Silva Peneda traz para a mesa a ideia de que é preciso mudar a agulha da discussão, pensar para lá do OE de 2012. E fala da necessidade de "debater quais as nossas potencialidades, os sectores onde nos devemos especializar". Explica: "Temos de analisar quais serão os nossos factores de competitividade e não pensar que são só o trabalho e os salários".
O facto de Silva Peneda propor que se páre para pensar noutros moldes, procurar novos caminhos e não combater a crise aplicando mais do mesmo que nos trouxe até aqui é, em si mesmo, regenerador. "Não acredito - diz ainda - que um país possa resolver os seus problemas se não houver um mínimo de confiança nos trabalhadores e na classe média".
É aqui que entra o café que partilho com Vassil e com Luís, angolano que as voltas da vida fizeram desistir do mestrado e da carreira militar para se tornar pintor na construção civil. Conversamos sobre os lugares que conhecem, as etapas que os trouxeram aqui, as perdas e ganhos do tempo vivido. Nem um nem o outro se sentem vítimas, sabem que é preciso arriscar e fazer mudanças radicais, dar a volta ao mundo se for preciso.
Com a televisão ligada, oiço Mário Soares dizer que o resgate das nossas contas vai dar muito dinheiro a ganhar a quem, impondo condições duríssimas, nos faz empréstimos. E o cardeal patriarca a falar da "perda discreta eprogressiva do poder de quem nos governa", um poder que resvalou para os mercados desregulados.
Vassil rendeu-se ao vício do café português, Luís já o trazia de Luanda. Ambos se sentem muito ligados a Portugal mas têm projectos para o futuro.
Quantas "potencialidades" poderíamos nós repensar e expandir, se quiséssemos fazer um esforço para sermos e fazermos aquilo que temos de melhor, sem aceitarmos passivamente o que nos impõem?