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Terá passado despercebido à maioria dos leitores mas Salazar já não vai ser uma marca de vinho nem de enchidos.Como Atena da cabeça de Zeus, a ideia surgiu da mente do ex-presidente da Câmara de Santa Comba Dão que se lembrou de comercializar vinho e enchidos da região sob a marca "Memórias de Salazar"; o ministro da Saúde haveria de apreciar isso. Porém, o avisado autarca que lhe sucedeu decidiu que, com ele, o projecto não iria avante por considerar que redundaria em chacota; na opinião de Leonel Gouveia, o ditador de Vimieiro é incontornável na história de Portugal não devendo ser esquecido, não devendo, contudo, ser relembrado: "É como se daqui a uns anos criássemos o vinho Cavaco Silva ou o chouriço Mário Soares", rematou.
A memória do Estado Novo é tão compreensivelmente indigesta que há quem não resista a apagá-la; recentemente, a Câmara de Lisboa apresentou queixa à PJ pelo roubo da placa afixada na antiga sede da PIDE (hoje, um condomínio de luxo...) que assinalava a morte de quatro jovens na tarde de 25 de Abril de 74 quando a polícia política abriu fogo sobre a população. Porém, por mais que se tente delir as provas materiais da ditadura, muitas das atitudes que a informaram permanecem vivas pela mão de portugueses como nós que, exercendo temporariamente o poder, para grande azar o nosso (e, inexoravelmente, o deles) não aprenderam nada com as grandes lições da História.
O director da Segurança Social de Braga, por exemplo que, apoucando a democracia, impediu a coordenadora do Sindicato da Função Pública do Norte de distribuir simples comunicados aos trabalhadores, alegando que os sindicalistas só "querem fazer ruído"; ou, o comandante-geral da GNR que puniu com cinco dias de suspensão o vice-presidente da Associação Sócio-Profissional Independente da Guarda, alegando entre outras desrazões que o dirigente associativo violara o dever de lealdade ao criticar em tribunal (sob juramento!) a falta de treino de tiro da GNR; ou ainda, na via crucis de César Nogueira, presidente da Associação dos Profissionais da Guarda, obrigado a cumprir 25 dias de suspensão com perda de vencimento, por alertar para o mau estado das viaturas da GNR. A avaliar pela despudorada coação que vai por esse país fora utilizando o registo biométrico, facilmente se antecipa por que razão na Saúde se anseia tanto por aprovar a Lei da Rolha: para médicos que dirigem poderem despedir outros médicos!
Ora, a arbitrariedade que sustenta o grande poder é a que inspira o pequeno (que, bajulador como é, sempre o tenta superar), tal como Alberto Pimenta abundantemente descreveu no seu iluminado "Discurso..."; porém, quando confrontados, um e outro se mostram surpreendidos qual Infanta Cristina, interrogada no âmbito do processo "Nóos", respondendo 182 vezes "não sei", 123 vezes "não me parece", 55 vezes "não me lembro" e 52 vezes "desconheço". Nem São Pedro negou tantas vezes Jesus Cristo. Não era certamente a esse "imenso desconhecido" que Wislawa Szymborska se referia quando observou, modestamente, no seu discurso Nobel que "Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si próprio "Eu não sei", as maçãs do seu pequeno pomar teriam continuado a cair como granizo mas, na melhor das hipóteses, ele teria parado para as apanhar e tê-las-ia mordido com gosto".
A única forma verdadeiramente nobre de exercer o poder é usando da mais judiciosa humildade. Há tempos, Ismael Silva, ex-aluno da UTAD, viu cair (não maçãs mas) bolotas no campo de concentração de Auschwitz e trouxe algumas para Portugal. Quando o carvalho que agora cresce no Jardim Botânico da Universidade começar a dar bolotas, seria importante medrá-las pelos hospitais do país onde, alguns dos nossos, confusamente deslumbrados, chamados temporariamente ao exercício do pequeno poder, facilmente se esquecem da efemeridade do cargo e se entretêm a amedrontar em esconsos gabinetes, profissionais abnegados que (ainda há pouco) lhes pagavam o café. Mas, também, que outra coisa seria de esperar de tão miserável país onde um primeiro-ministro, incapaz de digerir uma decisão desfavorável do Tribunal Constitucional, não lhe ocorre dar melhor exemplo do que dizer que os árbitros que escolheu foram mal escolhidos, que deveriam ser trocados por juízes que, já agora, decidissem sempre a favor da sua equipa?
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