É como todos gostávamos de estar para enfrentar a rudeza dos dias que correram, correm e correrão: muito bem calçados. Ou seja: armados o suficiente para aparar os encontrões, abanões e safanões que a crise nos dá. Não estamos - e por isso andamos de chinelo no pé e mão caridosamente estendida, à espera que a sorte nos calhe. Sucede que a sorte é como um raio: nunca se sabe onde cai, nem quando cai. A nossa, na verdade, tem sido um raio de sorte. Quase tudo parece recuar, quando precisamos desesperadamente de avançar. Ou, no mínimo, de acreditar que é possível avançar.
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Há montras de felicidade, apesar de tudo. No setor do calçado, por exemplo, a união dos verbos trabalhar e acreditar resultou (continua a resultar) no verbo avançar. O mais recente estudo sobre o estado da arte a nível mundial (World Footwear 2012 Yearbook, apresentado anteontem na Alemanha) mostra que, no ano passado, os produtores portugueses venderam cada par de sapatos cinco euros mais caros do que em 2010. Com esse feito, o calçado "made in Portugal" passou a ser o segundo mais caro de todo o Mundo (ultrapassámos a França e só temos a Itália à nossa frente, ainda assim a uma distância considerável).
A indústria nacional é a 22.ª em volume de produção, mas, facto fundamental, está em 11.o lugar no ranking da exportação. Mais e mais importante: dos 75 milhões de pares de sapatos exportados em 2011, quase 80% estão nas fileiras com preço mais altos (couro e outros). Foi esta aposta que permitiu ao setor do calçado alcançar a maior subida do preço médio no ano passado: 23,6%, contra 14,7% dos consagrados italianos, 14,2% dos portentosos chineses e 6,6% dos refinados franceses. Foi esta aposta que, contra a expectativa da maioria dos empresários, fez com que as exportações fechassem 2011 a crescer 16%, um número absolutamente notável.
É um milagre? Nada disso. É competência, inteligência e resiliência. O fruto agora colhido é o resultado do aturado labor de anos e anos, sempre muito bem amparado pela associação do setor (APICCAPS - Associação dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos), composta por gente que sabe muito da poda e que, por isso, não mendiga à primeira dificuldade nem manda protestar na rua para aparecer na televisão. O fruto agora colhido é o resultado da presença, cuidada e preparada, do setor nas maiores feiras internacionais ao longo das últimas duas décadas. O fruto agora colhido é, acima de tudo, o resultado da escolha de uma correta estratégia: aposta no preço alto e na qualidade em detrimento da quantidade; aposta na criação de marcas próprias e na resposta diligente e competente ao que o mercado reclama.
Está tudo feito? Longe disso. O grau de exigência elevou-se até um patamar sem retorno. Nesse patamar, não são permitidos descuidos. Esta gente, que é gente de antes quebrar que torcer, sabe disso e conhece bastante os caminhos que trilha. Está muito bem calçada. Porque soube calçar-se.