Na despedida de Marcelo Rebelo de Sousa - um comentário
Uma década de Marcelo Rebelo de Sousa (doravante MRS) como presidente da República Portuguesa deixa um sabor doce a tender para o amargo. Depois de uma primeira vitória conseguida praticamente sem aparelho partidário, com uma imagem de simpatia conquistada perante os eleitores através de uma presença televisiva ininterrupta, MRS conseguiu afirmar-se através de um estilo genuíno, de proximidade e interesse pelos cidadãos. Mesmo aqueles que lhe eram próximos, e lhe conheciam a tendência para jogos e lúdicas conspirações palacianas, começaram a convencer-se de que o professor tinha, finalmente, amadurecido e mergulhado no ethos de autocontenção inerente à difícil tarefa de ser estadista, sobretudo neste tempo e neste lugar que Portugal habita no século XXI. Sem nunca perder a tendência para a popularidade excessiva (uma espécie de populismo de classe alta?). MRS teve momentos fortes no seu primeiro mandato: uma relação de cooperação efetiva com o Governo da "geringonça"; uma intervenção de autoridade estabilizadora na mortífera crise dos incêndios florestais de 2017; um propósito nobre e reiterado de acabar com o flagelo dos sem-abrigo, entre outras iniciativas.
O segundo mandato, que começou em plena pandemia de covid 19, inicia um percurso cada vez mais entrópico de MRS, marcado por decisões precipitadas, desmesuras de gestos e linguagem, e um excessivo à-vontade na dissolução do Parlamento, conduzindo a eleições antecipadas. Na segunda dissolução, MRS não se importou de caucionar a causa indicada pelo ex-PM, António Costa, para sair (o parágrafo da procuradora-geral da República), que, na verdade, não passou de um pretexto para se precipitar para a cadeira de presidente do Conselho Europeu.
Mas, o pior de tudo tem sido a posição de MRS perante a guerra na Ucrânia. De alguém com o conhecimento académico e a experiência de mundo de MRS, esperava-se que não trocasse o interesse nacional e o princípio ciceriano do salus populi suprema lex esto (que a salvação do povo seja a lei suprema) pela maniqueísta narrativa, forjada em Washington e apurada em Bruxelas, que atira para debaixo do tapete as responsabilidades do "Ocidente alargado", ao longo de trinta anos, que ajudam a explicar grande parte das causas desta guerra. Pior ainda: MRS mantém-se cúmplice da atual investida da União Europeia contra uma solução diplomática. Além de cercear as liberdades individuais de opinião com pesadas sanções (que a grande imprensa não publica), a UE tem-se multiplicado em declarações - de militares e políticos - sobre a inevitabilidade de uma guerra contra a Rússia. O mesmo é dizer uma guerra que reduziria a Europa a ruínas e faria "os sobreviventes ter inveja dos mortos" ... Em 1915, o presidente Manuel de Arriaga demitiu-se por não aceitar o envolvimento de Portugal na I Guerra Mundial. Em 2003, o presidente Jorge Sampaio recusou-se a aceitar a mentira usada pelos EUA para invadir o Iraque. Em 2026, o país deixou-se mergulhar numa corrente caudalosa de russofobia que nos poderá conduzir à aniquilação. Desta vez, o presidente da República é apenas mais uma voz a juntar-se no coro de imprudência e imaturidade formado pelo Governo e pela Assembleia da República.

