Corpo do artigo
Agora estás deitado na praia e prestes a abrir um livro depois do primeiro mergulho.
Só que antes atiraste para a areia a lancheira, a mochila, o guarda-sol, o papagaio, a sacola, o carrinho do bebé, a rede do spike ball, as raquetes, o boné, os óculos escuros, a mochila da criança, a mochila dos brinquedos da criança, as cadeiras de praia e mais uma série de coisas como a esperança.
Só que antes levaste às costas as cadeiras, as tuas mochilas e as da criança, o carrinho, os sacos e as sacolas, as raquetes e a rede de spike ball, a lancheira e o guarda-sol, mais o empréstimo da casa e os traumas do Verão passado, tudo encavalitado nos costados terminando no calhamaço que pretendes ler, periclitante lá no cume, e lá se mantendo num equilíbrio de circo. Só que antes fizeste sair a tralha da mala do carro, aflito com o parto de tanta porcaria confusa. Só que antes esperaste uma hora para estacionar no descampado à frente da praia.
Só que antes, desde que pararam na estação de serviço, o bebé chorou pela A2 abaixo por causa da avaria do ar-condicionado e pelo outro motivo ancestral dos bebés - porque sim. Só que antes esperaste três quartos de hora na fila para a caixa com as almôndegas já resfriadas no prato enquanto, cercando-te, havia quem chorasse, quem bufasse, quem se resignasse, quem desistisse. Só que antes, por falta de lugar, estacionaste na zona dos camiões e, desconfias, no pé de alguém.
Só que antes, de súbito e por milagre, o congestionamento da autoestrada dissipou-se e os carros começaram a arrancar. Só que antes o engarrafamento de duas horas fazia prever um acidente. Só que antes o calor no pára-arranca deu cabo do ar-condicionado. Só que antes mandaste aos grupos de WhatsApp a fotografia dos mais de quarenta graus no mostrador. Só que antes o acesso à ponte parou a cidade.
Só que antes encheste o carro até ao tejadilho num processo de Tétris íntimo e violento. Só que antes acordaste cedo, puseste três toalhas e o livro no saco maior; gelo, iogurtes, garrafas de água, ovos cozidos e os restos do dia anterior na lancheira; meia tonelada de roupa em cada mala; as fraldas, as toalhitas, as chupetas e demais assistência ao bebé, além dos brinquedos nas mochilas próprias; e saíste sem te esqueceres da parafernália do spike ball, das raquetes, do boné e dos óculos escuros, além dos protectores solares e da paciência.
Só que antes sonhaste com a praia meses a fio porque não só trabalhaste como buliste, não só buliste como te estafaste. E agora estás deitado na areia, emergido do primeiro mergulho e prestes a abrir o livro - quando te passa pela cabeça, nos sete minutos que vais gozar antes de se fazerem horas de partir, que descansar é muito cansativo.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia