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Depois de dois anos de pandemia, as praxes voltaram em força. Já várias vezes me pronunciei publicamente contra as praxes. Para tal bastou-me sempre o que observava nas ruas da cidade: a indignidade do comportamento de estudantes a humilharem e gozarem outros estudantes, muitas vezes maltratados, invocando, os seus defensores, nobres objetivos de integração social e institucional de jovens acabados de chegar a uma instituição de Ensino Superior. Integram? Talvez, mas integrar não é virtude. Integram em quê? Num mundo decente ou indecente? Num mundo regulado por regras que promovem o bem comum ou por regras que promovem o arbítrio e a injustiça?
Este ano, um amigo chamou-me a atenção para a complexidade e grau de formalização das praxes: com códigos, mandamentos, tribunais, trupes, trajes e toda uma parafernália de regras, designações e princípios hierárquicos. Fui ver. E descobri um mundo de que não gosto. Um mundo que é a antítese do que queremos e defendemos na academia, uma instituição que valoriza (ou deve valorizar) o conhecimento, a liberdade, o espírito crítico e a cooperação entre pares.
Detenho-me apenas em alguns dos mandamentos e designações que encontrei: o caloiro deve obediência total a todos os de hierarquia superior; deve permanecer em silêncio até ser chamado a intervir e pedir licença antes de o fazer; fazer com gosto e um sorriso tudo o que o mandem, mesmo quando se trate de prestar trabalho doméstico aos praxistas; o caloiro não é gente; é assexuado; nunca tem razão; é incondicionalmente servil, obediente e resignado; sorri ao ser praxado; não opina; deve venerar a comissão de praxe e toda a hierarquia praxista.
Duas obsessões estão presentes nos códigos de praxes das várias instituições de Ensino Superior. Em primeiro lugar, a hierarquia e o poder hierárquico baseados no número de inscrições no curso. São os alunos que mais vezes chumbam e mais tempo demoram a acabar os cursos que chegam a superiores hierárquicos. São esses que humilham os que acabam de entrar. Em segundo lugar, as proibições e sanções, quase sempre arbitrárias e fúteis, associadas ao traje e à imposição da obediência dos que são considerados inferiores.
As praxes promovem a aprendizagem da resignação e da obediência sem avaliação nem resistência, não do espírito crítico e da criatividade. Promovem a aceitação da humilhação e do medo, não da afirmação pessoal e da coragem. Promovem a discriminação, não a solidariedade e a tolerância. Cultivam mesmo a antítese do que deve ser a vida na universidade.
*Professora universitária