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Não memorizamos números, não preparamos o caminho para uma viagem e já nem olhamos quando fazemos marcha atrás no carro, porque confiamos plenamente na câmara ou nos sensores. Com a ajuda da tecnologia, o Mundo tornou-se mais fácil e mais seguro, mas “não há almoços grátis” e há um custo para todas as pequenas ajudas, que nos poupam grandes esforços. Se um dia a tecnologia se apagar, já imaginou o que deixará de fazer? Conseguirá pegar num velhinho telefone de fio e ligar aos familiares mais próximos? Ou lembrar-se de quem marcou o golo do título na época 2012/2013? Pouco provável. Mas a memória é apenas um fator afetado por nos apoiarmos demasiado na tecnologia.
Com a evolução da inteligência artificial (IA), corremos o risco de passar a confiar excessivamente nestes sistemas que, muitas vezes, são divulgados como sendo à prova de erro, e “adormecemos ao volante”, metaforicamente, claro, deixando de estar no controlo da situação e capazes de ter pensamento crítico no momento de entrar em ação. Fabrizio Dell’Acqua, da Harvard Business School, demonstrou uma parte dos riscos de um sistema automatizado na área dos recursos humanos. Pediu a vários grupos de recrutadores para avaliarem currículos com a ajuda de inteligência artificial e, surpreendentemente, os que realizaram um melhor trabalho foram aqueles a quem foi fornecido um sistema menos completo, porque os obrigou a estarem mais atentos e a não confiarem tanto nos resultados oferecidos pela tecnologia.
“Em geral, os resultados mostram que a maximização do desempenho humano/da IA pode exigir uma IA de menor qualidade, dependendo do esforço, da aprendizagem e do conjunto de competências dos humanos envolvidos”, conclui o investigador, numa apologia de uma IA contida e que não nos deixe como meros espectadores. Num outro trabalho, foram pedidas ideias em sessões de brainstorming com e sem apoio do ChatGPT. E o resultado surpreendeu Jeremy Utley, investigador de Stanford, porque quem tinha apoio tecnológico confiou em absoluto nos resultados e não discutiu ideias ou experimentou variações das indicações dadas ao sistema. Faltou o processo colaborativo entre humanos. Foram menos criativos e produziram menos ideias.
Rodeados cada vez mais por esta tecnologia que nos ajuda a escrever um e-mail, a escolher o que ver na televisão e o que ler online, um artigo da revista “Fast Company” sugere que “rendemos a nossa humanidade” e nos encontramos numa versão digital da síndrome de Estocolmo. Num futuro “não muito distante”, um dos prazeres e talvez necessidade do ser humano seja “enganar a IA” e a previsões sobre nós. A nossa salvação, e até do nosso emprego, não será a melhor tecnologia possível, mas a melhor interação possível entre nós e as máquinas.