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Ninguém lhe escapa. Suprema ironia, aquela que une ricos e pobres, filósofos e imbecis, santos e demónios no mesmo destino: é a morte, o mais antigo mistério ocultado aos vivos. Ora, nas vésperas de mais um dia de finados, feriado em todo o mundo cristão, eis que o Papa, feito pastor de vivos, dá orientações sobre o que fazer dos mortos.
Um documento do Vaticano, assinado esta semana por Francisco, diz que "a Igreja continua a preferir a sepultura dos corpos" e, admitindo embora a cremação, condena expressamente a dispersão das cinzas ou a sua conservação em casa.
O texto elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé dá instruções para que as cinzas dos defuntos sejam conservadas em local sagrado, como no cemitério, mas que não seja permitida a sua dispersão "no ar, na terra ou na água", sob pena de, em última instância, lhes ser negado um funeral religioso.
A assinatura do Papa tem uma finalidade: relançar uma reflexão sobre a morte, o último e mais moderno tabu das sociedades urbanas. Contra a corrente que empobrece os rituais funerários e a negação do luto, Francisco quer valorizar o culto e a memória dos mortos.
A nossa cultura estigmatizou a morte, não gostamos de falar dela, escondemo-la. Na geração dos nossos pais, nascíamos e morríamos em casa, rodeados pela família e pelos que amamos. Meninos, assistíamos em casa à agonia ou à mortalha dos avós. Agora, ocultamo-la dos filhos, como se escondê-la fosse negar o mais humano dos destinos. Agora, sete em cada 10 morrem nos hospitais e ainda sobram dois para morrer de acidentes e mais um na ambulância, pelo caminho. A agência trata-nos de tudo, até mesmo o requinte de um funeral acompanhado pela internet.
É benta a intenção do Papa, mas é redutora a forma como a Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício, a Inquisição) pretende regular o que fazer dos corpos defuntos. Porque honrar os nossos mortos não está na forma como deixamos os cadáveres sumir-se no chão, consumidos pelos vermes, ou aspergir as suas cinzas ao vento. Mas sim na experiência do luto, essa dor cortante da perda irreversível, a ausência definitiva. Ou, ainda, na dolorosa travessia do perdão que nos conduz à paz.
Ora, não há lutos iguais, nem mesmo na cor: preto no Ocidente, e branco, sinal de paz e despojamento, na maior parte das culturas orientais. Sei do luto bento de uma viúva que, ao recordar-se do defunto marido, dizia: "No céu esteja quem no céu me deixou". Não era a dor da ausência que falava. Era a paz do perdão. E nada menos que o perdão para que os nossos descansem em paz.
* DIRETOR