Foi algures em 1986. Eu era então chefe de Redação do "Comércio do Porto" e estava a discutir a primeira página no gabinete do diretor, o Manuel Teixeira - que após uma dúzia de anos a fazer de cardeal Richelieu do Rui Rio, na Câmara do Porto, está de regresso à TSF (a Grafonola, como ele dizia com graça), ou seja, somos outra vez colegas, as voltas que este mundo dá!
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Enquanto conversámos, íamos deitando distraidamente um olho ao Telejornal, até que um administrador da EDP atraiu a nossa atenção ao chorar-se da astronómica quantidade de gente que não pagava a conta da luz e manifestar a sua impotência face aos caloteiros: "Não vamos cortar a luz a uma câmara, a um hospital ou a um jornal, pois não?", lamentou-se.
Rápido (sempre o foi) e fino como um alho, mal acabou de ouvir isto, o Teixeira gritou logo pela Senhorita (era assim que ele tratava a secretária, a Orquídea, talvez por ela ser uma pessoa de crescimento reduzido, talvez por outro motivo, não sei) e pediu--lhe que no dia seguinte lhe lembrasse para dizer à administração que devíamos deixar de pagar a conta da EDP.
Vem este episódio, já com barbas, a propósito da verdade universal que ninguém gosta de se sentir um otário, de ter as contas em dia e cumprir religiosamente as suas obrigações fiscais e laborais - e depois reparar que o vizinho não paga a conta do condomínio e não lhe acontece nada, que o empresário engana o Fisco e não lhe acontece nada, que o colega do lado que ganha mais foge ao trabalho e não lhe acontece nada.
Se os outros não pagam a conta da luz, por que havemos nós de pagá-la? O Manel Teixeira tinha toda a razão. Deixar de pagar à EDP foi uma justa medida de combate à concorrência desleal. Ou bem que há moralidade, ou bem que comem todos. E o papel da Justiça numa sociedade democrática é garantir que haja moralidade, ao castigar com conta, peso e medida os que não cumprem as regras.
Lamentavelmente entra pelos olhos dentro que não é isso que está a acontecer. A Justiça falha e muito. O padeiro que roubou 70 cêntimos ao patrão é condenado a uma multa de 315 euros - e se não a pagar vai para a cadeia, onde pode, a título de boas-vindas, ser violado durante três dias consecutivos, como aconteceu ao contabilista na prisão da Carregueira. O banqueiro que foi multado em um milhão de euros - por falsificar contas, divulgar informação errada, manipular o mercado bolsista e entregar dados falsos ao regulador - não tem de pagar um cêntimo sequer e continua a levar a vida airada de milionário na sua maravilhosa quinta em Sintra.
A Justiça falha e muito. Não sei se por corrupção, se por incompetência, se por maldade. Sei é que falha. E sei que não gosto nada de viver num país em que nós, cidadãos comuns, quando comparecemos perante ela, estamos expostos a dois vereditos - condenados ou absolvidos, enquanto os poderosos beneficiam de uma terceira via: a prescrição, uma imoralidade que lembra a carta "Saia da Prisão", do Monopólio, que guardávamos para usar quanto caíssemos nessa casa.