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Chegamos finalmente à demagogia das décimas. Até aqui os cortes eram números sólidos, duros. Agora o Governo leva-nos para o território dos cortes fininhos, sibilinos. Cortes pequenos em vez de cortes grandes. Mas sempre cortes. Acho estes muito piores. 1% era 1%, 5% era 5% . Doía. Notava--se. Eram circunstâncias sérias, para responder a problemas concretos. Daqui para a frente será sempre a fingir. A manipulação dos números e da informação permite tudo. Hoje 23,25% de IVA, mais tarde 23,75%, depois 24,17%, a seguir quiçá 24,99%. E na taxa social única (TSU) lá iremos - 0,2% hoje, mais 0,1% amanhã, depois 0,05% e no futuro qualquer outra coisa - cêntimo a cêntimo. Cortes mais frequentes, mais disfarçados. Uma espécie de "Bolsa do défice" que pode ir variando nas décimas da subida dos impostos ao mês - sempre em cobrança coerciva, claro. Ontem fez-se um brutal "upgrade" na relação sadomasoquista com o contribuinte - o da noção de "aumento de impostos" através do princípio da insensibilidade aos cêntimos - até o pagador de impostos morrer sem dar conta.
Toda a conversa de Maria Luís Albuquerque é mais um tiro - um tirinho - na economia que já levou três tiros no peito e quando sai do coma descobre que continuam a disparar contra ela. Toda a conversa é "função pública" - promoções e correções, diz a ministra. Estamos perto das eleições, portanto. Correções salariais justas? Justíssimas, supõe-se, mas alavancadas numa realidade impossível de suportar: mais impostos transversais à sociedade portuguesa através do IVA ou de maior pagamento da taxa social única. 150 milhões em IVA + 100 milhões na TSU. Mais 250 milhões engolidos pelo Estado.
Há uma economia a dar tudo por tudo para sobreviver debaixo de um peso inadmissível de impostos e a ministra diz: "Se tiver uma surpresa boa da economia" até recupera mais rapidamente as tabelas da Função Pública. Belisquem-nos por favor. É mesmo verdade? A economia privada faz tudo por tudo para sobreviver e pagar impostos e a senhora ministra foca-se na justiça salarial do Estado? É importante, mas esquece o desespero da economia real.
Ao mesmo tempo, como diz o ministro Mota Soares, nenhum pensionista ficará pior com a "contribuição extraordinária social" (CES) - que passa de um corte precário a definitivo, embora mais baixo... Espetacular. Não discuto para já se é necessário ou não rever todo o sistema de descontos para a Segurança Social - que não se altera com 0,2% de aumento da taxa social única sobre os que trabalham. Irrita absolutamente fazerem das pessoas burras, como se devessem comemorar a fixação de uma redução definitiva nas pensões no momento em que as aliviam de um corte extraordinário (ainda que ligeiramente superior).
Eu sei, tudo isto é muito técnico. Mas há testes básicos: nenhuma demagogia muitas vezes repetida na televisão consegue apagar a física da realidade: trata-se de mais IVA, mais TSU e cortes definitivos nas pensões a partir de mil euros. Ah, e calma, ainda falta o Tribunal Constitucional dizer que a repartição dos esforços continua a não ser equilibrada.
Talvez possam, entretanto, surgir mais uns impostos encapotados sobre as empresas ao mesmo tempo que se ilude com a ideia de que a reforma do IRC está a ajudar a economia. Mas qual economia? A das empresas que ainda têm lucros? Por essas e outras, muitas empresas começam suavemente a exportar - as faturações. Internacionalizar também é isto: abrir escritórios fora e faturar barato cá e caro lá, onde os impostos são mais baixos. Nunca nos esqueçamos que as grandes empresas cotadas em Bolsa já pagam os impostos na Holanda, apesar de todo o seu orgulho nacional...
Por mais que se tente inverter o ciclo de desânimo, cada decisão em que o Estado não se reforma e coloca sempre o ónus da recuperação do défice através da subida de impostos, o rumo mantém-se. Precipício. Reforça a convicção dos mais ágeis de que isto não tem saída e fá-los partir. Era mesmo-mesmo-mesmo importante acabar com a ideia de que em Portugal só há duas certezas: a subida de impostos e a morte.