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Na entrevista do cardeal Manuel Clemente ao "Expresso" uma das palavras mais repetidas é discernimento. Se mais nada ficar quando a polémica em torno dos divorciados que refizeram a sua vida com uma nova união passar, que ao menos a Igreja passe a dedicar uma maior atenção ao discernimento. Já agora, que aprenda a declinar bem os verbos que o Papa Francisco propôs na "Amoris Lætitia": "Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade".
O discernimento exige o acompanhamento que pode levar à reintegração das pessoas que, por causa da sua situação irregular, se viram, de certo modo, afastadas da comunhão plena com a Igreja.
Para o Papa Francisco, como bom jesuíta, acompanhar pessoas é uma arte. Logo na sua primeira exortação apostólica ele desafiou a Igreja a "iniciar os seus membros - sacerdotes, religiosos e leigos - nesta "arte do acompanhamento", para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que, ao mesmo tempo, cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã" (Evangelii Gaudium, n.º 169)
Justificava-se a publicação de muitas notas pastorais e de tantas outras iniciativas para motivar os cristãos, e não só os recasados, a exigirem um acompanhamento espiritual sério para uma vivência mais coerente e profunda da sua fé. Há tantas outras situações tanto ou mais graves do que a dos cristãos numa situação matrimonial irregular que se aproximam da comunhão.
Por exemplo, aqueles que vão à missa todos os dias, e comungam, antes de ir para as suas empresas - e, ali chegados, metem na gaveta o Evangelho e a doutrina social da Igreja e não olham a meios para atingir os seus objetivos. Aqueles que sacrificam o seu semelhante ao lucro ou ao sucesso, sem se aperceberem. Esses, tal como os recasados, precisam de acompanhamento e de fazerem um discernimento para poderem, de novo, abeirar-se da comunhão.
Talvez a Igreja não promova o acompanhamento espiritual - como deveria e como o Papa pediu na sua primeira exortação - com o receio de que não existam acompanhantes espirituais suficientes para desempenhar essa missão. De facto, não existem. E não é por causa da escassez de sacerdotes, porque essa não é uma tarefa exclusiva deles. Perdoar os pecados, é. Mas acompanhar não é.
"É necessário que a vida consagrada invista na preparação de acompanhantes qualificados para este ministério. E digo a vida consagrada, porque o carisma do acompanhamento espiritual, digamos, do guia espiritual, é um carisma "laical". Também os padres o têm; mas é "laical"" disse o Papa Francisco em janeiro do ano passado, em Roma, aos superiores dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica.
Assim, o maior problema não será a falta de sacerdotes. É a falta de cristãos adultos, devidamente preparados e habilitados. Felizmente, já vão existindo alguns, até em Portugal. Mas serão ainda precisos muitos mais. Sobretudo se mais cristãos começarem a solicitar esse apoio.
A Igreja deveria investir muito mais em gerar cristãos adultos do que em ditar comportamentos a fiéis que, ao fazê-lo, está a infantilizar.
PADRE