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Não sei se foi Luís Montenegro, numa entrevista concedida ao JN, o primeiro a utilizar a frase que mais tinta e conversa tem feito correr nos últimos dias. Disse o líder parlamentar do PSD: "As pessoas vivem pior, mas o país está melhor". É verdade que a tirada contém todos os ingredientes para pôr em pé os cabelos de muita gente. Mas também é verdade que, dentro deste aparente paradoxo, está um truísmo a que, goste-se ou não, temos de nos habituar: a crise do país não se resolverá se voltarmos aos tempos da louca mas apenas aparente abastança. E este não é um desafio cuja solução possamos assacar apenas ao Governo: é um desafio que cada um de nós está obrigado a agarrar, se quisermos viver num país que se orgulhe de si próprio e que garanta um futuro minimamente sustentável aos vindouros.
O que Luís Montenegro pretendeu dizer está nos livros: há sempre uma distância, mais ou menos longa, entre a melhoria dos indicadores económicos e o seu real efeito no bolso das pessoas. Mas como ninguém é ainda capaz de dizer que o final do mês já parece menos longo, a frase do líder parlamentar soa a insultuosa, sobretudo para os que vivem pior.
Na verdade, para que a frase faça sentido, é fundamental que se verifique, a jusante, uma condição. O "ajustamento" que a troika nos impôs não pode acabar num reforço financeiro das elites económicas, por troca com uma mais acentuada desigualdade na distribuição da riqueza. Esse resultado seria catastrófico e intolerável. Significaria que o esforço feito por muitos apenas beneficiaria uns poucos. Todos os outros passariam a viver muito pior, para que o "país" vivesse melhor. Eu não quero fazer parte desse país, porque esse será um país em que a regra básica da democracia deixou pura e simplesmente de existir: o povo deixará de ser o eixo da roda, para passar a ser mero apetrecho de uma coisa qualquer a que não poderemos chamar democracia.
Este é, enfim, o desafio maior do Governo (do atual ou de outro qualquer): ajustar, sim, mas ajustar garantindo que os direitos e deveres dos cidadãos se mantêm equilibrados. Isto é: que a equitativa distribuição da riqueza não é apenas um palavrão de circunstância, mas sim o ponto de chegada deste caminho cheio de pedras agudas. Baixar alguns patamares o nível dos gastos não pode ser sinónimo de empobrecimento duradouro e generalizado. Tem de ser sinónimo de um país com contas certas. Não há outra forma de o dizer: a vida concreta das pessoas será tanto pior quanto mais criativa for a contabilidade do Estado. O passado provou-o à saciedade. Era mentira que Portugal estava bem e os portugueses também. Ora, como se sabe, viver na mentira é um passo sério para o descalabro. Já provamos essa droga, traduzida com brilho pelo poeta Rui Nunes da seguinte forma no livro "Uma viagem no outono": "O futuro onde estamos tem a iníqua alegria dos sacanas". Eu não quero dar razão ao Rui Nunes.