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Nos dias piores, este país não parece um país. Parece uma dívida que temos de ir gerindo, um problema que temos de ir resolvendo. É mais um cubo de Rubick do que um país: a conjugação de meia-dúzia de variáveis simples resulta num completo quebra-cabeças. Não sabemos resolver-nos.
Vamos tentando. No Verão, mal sabemos nascer, o que é perfeitamente natural, se nem as vírgulas conseguimos usar. Dizem os jornais que chegam as férias e com elas a “crise das maternidades”. Por vezes, põem as aspas em “crise”, outras em “crise das maternidades” - felizmente, ainda ninguém se lembrou de as pôr apenas em “maternidades”.
Se o fecho recorrente das urgências de ginecologia e obstetrícia, as deslocações de duzentos quilómetros para ter um filho e a instabilidade que isto traz às grávidas não se pode configurar, sem aspas, como crise - gostava de saber o que seria preciso para tirar as aspas à palavra. Bebés a nascerem em ambulâncias e grávidas a morrerem em trânsito? Também já aconteceu.
Mas depois acabam as férias, vira o ciclo mediático, cria-se mais uma comissão cujas recomendações ninguém segue, todos se esquecem e, lá para Dezembro, começa a gerar-se uma nova crise sem aspas. É que insistimos em conceber no fim do ano. O problema cresce durante quarenta semanas e vai nascer na altura mais problemática e inconveniente.
Mas há mais: neste país, não se sabe onde nascer e não se sabe onde morrer. Há uns dias, saiu um relatório da Entidade Reguladora da Saúde. Passou discreto, mas lá se diz que, em 2023, “48% dos doentes referenciados não foram admitidos por óbito anterior à admissão”. Quase metade dos doentes a precisar de cuidados paliativos morreu sem os ter - morreu sem os cuidados, o alívio e a ajuda que deveria ter tido.
O próprio relatório tem um problema incompreensível: estuda apenas uma tipologia de Unidade de Internamento de Cuidados Paliativos, a de situações paliativas de “complexidade baixa e moderada”, deixando de fora os casos mais graves, que só podem ser acompanhados nos hospitais.
Sem a análise de uma boa fatia da Rede Nacional de Cuidados Paliativos, fica-se sem perceber a dimensão do problema, embora o Observatório Português dos Cuidados Paliativos tenha dito em Julho que o problema é de facto grave: a cobertura permanece muito abaixo de todas as recomendações nacionais e internacionais.
E assim nascemos em crise e morremos em crise. Mas pelo menos conseguimos uma proeza: sendo “crise” (aqui, as aspas estão bem), por definição, um momento transitório e de decisão, nós transformámo-la em perene e indecisiva.
O autor escreve segundo a antiga ortografia