Tudo começou com a Vera Roquette. Foi o meu primeiro contacto com o "Especial de Natal da Porta dos Fundos". Vera Roquette não gostou e cancelou a subscrição da Netflix, segundo ela "com pena", já que estava a ver a série "The Crown" e teve, assim, de interromper.
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É estranho que a pessoa que apresentava "Agora escolha" pareça não entender que pode, de facto, escolher, e não ver tudo o que aquela plataforma tem para oferecer. Também há lá uma data de documentários que me parecem facciosos, e não é por isso que cancelo o serviço. Temos esta coisa fantástica que é a liberdade de ver só o que queremos. Há uma série de hipóteses, sendo que cancelar a Netflix também é uma delas, embora seja uma penitência maior para o próprio, neste caso a Vera Roquette, que fica assim impedida de ver o final da sua série preferida. Também vários líderes evangélicos brasileiros exortaram os fiéis a que cancelassem a subscrição da Netflix. Eu continuo a achar mais interessante aquela sugestão do "amem-se uns aos outros". Uma petição online (essa poderosa arma) conta já com mais de 1,8 milhões de assinaturas, petição essa onde é recordado que não é a primeira vez que a Porta dos Fundos "zomba da fé cristã". São, por isso, pecadores reincidentes, destinados a arder no Inferno. A petição pretende que o filme seja retirado do catálogo da Netflix. É esta espécie de chantagem, que se tornou moda, que me custa a entender. Antigamente (e este "antigamente" não remete para a Grécia Antiga, mas para tempos relativamente recentes, já com internet de banda larga e tudo), quando não gostávamos de alguma coisa, criticávamo-la e seguíamos em frente. Agora, parece que só nos sentimos vingados se o objeto da nossa crítica desaparecer: denunciamos no Facebook para que seja bloqueado, fazemos petições para que seja suspenso, há movimentos populares para despedir determinada pessoa... Se não gostamos, se nos ofende, tem de desaparecer. Esquecemo-nos é que a panóplia de coisas que ofendem gente é muito mais vasta que o extensíssimo catálogo da Netflix, e por isso o resultado final seria o vazio. Nada restaria para contar a história. Nem a "Chip and Potato", os desenhos animados favoritos do meu filho, que mostram as aventuras de um cachorrinho pug e do seu ratinho de estimação. De certeza que esta submissão do rato ao cão há de ofender alguém, pelo que a Netflix teria de cancelar esta série também. Se acham que isto é exagero, acreditem que, por experiência própria, sei que qualquer assunto pode ser considerado ofensivo por alguém. Até os mais inesperados. Se sabemos que religião, política e futebol são um campo minado, a verdade é que já recebi reclamações profundamente indignadas de gente ofendida por eu ter ousado brincar com: restaurantes que servem comida em tábuas, youtubers que enchem banheiras com doritos, habitantes de Moimenta da Beira que não querem saber da Web Summit, caçadores de tempestades, partos em casa... Garanto que não estou a inventar, e estes são apenas os que me vêm à memória num exercício rápido. Todos os assuntos são sagrados para alguém. A religião é sagrada para mais gente ao mesmo tempo, só isso. Mas todos temos os nossos templos que achamos que ninguém pode profanar. Sim, todos, até as pessoas que juram não se ofender com nada, se pensarem bem, encontram alguma ferida na qual agradecem que ninguém escarafunche. A diferença reside no que fazemos com essa ofensa. Neste caso "levar desaforo para casa", essa ação sempre tão malvista, é bastante saudável. Chama-se ter poder de encaixe. Os atacantes que atiraram cocktails molotov contra a sede da Porta dos Fundos, em plena noite de Natal, não devem ser assim tão cristãos (ou então no Brasil não existe nada parecido com a missa do galo). O ataque à sede do grupo humorístico foi reivindicado pelo Comando da Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira, nome que, por si só, parece um sketch. É curioso que o "Especial de Natal" do ano passado, em que Jesus também era satirizado, mas surgia como vilão sem escrúpulos, não tenha causado esta celeuma. Das duas uma, ou os brasileiros ainda não tinham aderido à Netflix, ou estes radicais de extrema-direita acham muito mais grave ser gay do que ser um malfeitor. É capaz de ser esta segunda hipótese, sim.
20 VALORES
Para Pinto da Costa, que completou ontem 82 anos e está mais em forma do que eu, e até do que outros dirigentes desportivos. A saúde de Pinto da Costa pregou alguns sustos, nos últimos anos, mas felizmente nunca lhe aconteceu nada parecido com o surto de amnésia que levou Luís Filipe Vieira a ser internado na véspera de ser ouvido pelo Ministério Público. Felizmente, o presidente do Benfica recuperou, e até se mostrou de boa saúde há dias, no "Preço Certo de Natal". Falhou bastante, mas talvez porque na montra final não estavam oficiais de justiça. Adivinhar o preço de micro-ondas é mais difícil.
*HUMORISTA