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Há uns tempos, visitei o centro logístico da Wook. É uma longa máquina de matar livrarias, um intestino mecânico manuseado por obreiros humanos - mãos quase invisíveis, e de tal forma certeiras que mal parecem de pessoa. São mãos de máquina.
Isto não é publicidade nem nada nas cercanias. Como escritor, dizem-me os livreiros, falar da Wook é tirar-lhes o pão. Longe das questões do alimento - e o meu também está nos livros, venham eles da livraria ou do centro logístico -, há uma inconformidade poética num sistema mecânico que distribui livros. É talvez o espírito humano servido em correias de transmissão.
As secções A, B e C, por ordem de procura, asseguram o esquema fabril. O site é a boca. Atrás dele há isto: um sistema cuja complexidade, dançada entre algoritmos e calhas articuladas, qualquer pessoa compreende. Os trabalhadores só têm de cumprir o que lhes ordena a máquina. E nem sequer obedecem a quente, como os trabalhadores que suam perante os fornos de fundição. Trata-se de um sistema limpo e frio que cheira a cola de livro novo.
Mais à frente, a máquina fica catedral. E eis a maior livraria do país, o sonho que a Byblos não cumpriu. Uma imensa estrutura de metal com vários andares de altura, espécie de estantes mascaradas de outra coisa qualquer, onde milhares de livros - e por que não dizer milhões? - aguardam que um braço robótico os leve. São milhares, são milhões, mas quase nenhum à vista: acamados em caixas de plástico, esta é uma biblioteca sem lombadas.
Também sem livreiros. Ali há operários do livro, algo que até agora se via apenas nas gráficas. São operários de mãos limpas - e, embora se cumpram as normas de segurança, não creio que se arrisque uma avalanche de livros. Ou que um único livro faça qualquer estrago.
A matéria que estes operários trabalham é uma intemperança contida. Os mundos para lá deste mundo que os livros guardam submetem-se sempre, calados e mansos, ao passo seguinte da expedição do pedido. Aqui, os livros são inofensivos.
No fim, embalados, seguem pelos CTT. Já encomendei um livro de noite para o receber de manhã, numa eficácia admirável que tem tanto de novidade como de antiguidade. Ford só não se interessou por livros porque era um homem sensato. E eu, que me interesso por livros, não percebo nada de carros e quando me dá sou insensato, saí da Wook sabendo que o barulho quase surdo daquelas máquinas pode ser inaudível para muitos - mas é certamente um requiem para muitas livrarias.
o autor escreve segundo a antiga ortografia