Num momento em que as palavras poupança, contenção e maximização de recursos continuam a liderar o léxico do debate público, é extraordinária a ligeireza com que se evita abordar temas que, tendo tudo a ver com isso, são, por razões de Estado, ainda mais estruturantes. Refiro-me a entidades administrativas com competências exorbitantes, sem tutela nem fiscalização de ninguém e que só servem para o sistema político partidário encaixar protegidos e amigos, com a capa hipócrita de estar a alienar poderes e competências para entidades, por definição, independentes.
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Refiro-me, nomeadamente, à ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social, à CNE - Comissão Nacional de Eleições, à CNPD - Comissão Nacional de Proteção de Dados, à CRESAP - Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública. Incluo também neste lote, embora num contexto mais responsável e sério, o próprio Tribunal Constitucional.
Todos estes organismos custam fortunas ao erário público. Todos emanam praticamente a 100% do sistema de partidos, através de eleição/nomeação parlamentar ou governativa.
Todos podiam e deviam ser substituídos, quase a custo zero, pelos órgãos de soberania independentes ou outros fiscalizados democraticamente, os tribunais, no caso da ERC, da CNE, da CNPD, e o Governo, no que à CRESAP diz respeito.
A ERC tem cinco membros, quatro indicados pelo Parlamento e um cooptado por estes. A CNE é constituída por dez membros, seis oriundos da Assembleia da República e três nomeados pelo Governo. A CNPD tem sete membros, três chegam via Parlamento e dois via Governo. Quanto à recém-criada CRESAP, trata-se de um verdadeiro batalhão militar, com os seus 18 membros efetivos, 12 suplentes e 20 a 50 técnicos, que constituem uma bolsa de peritos. Um verdadeiro quartel! Todos designados pelo Governo, após uma simpática e credibilizante audição parlamentar de alguns dos nomeados.
Finalmente, o Tribunal Constitucional, constituído por 13 membros, dez oriundos da dinâmica parlamentar e três posteriormente cooptados pelos seus pares.
Vamos então ao rol das inutilidades.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social devia ser extinta. Uma Ordem dos Jornalistas com funções disciplinares, o responsável autocontrolo das redações, uma Lei de Imprensa objetiva e clara e tribunais céleres e justos eram a única solução compatível com a modernidade do Estado de direito. Os jornalistas e os cidadãos agradeciam.
A Comissão Nacional de Eleições, muito na moda pelo destempero imprudente do seu atual presidente, bem denunciado há dias por Rui Moreira, faz-me recordar as democracias de fachada do Terceiro Mundo, onde os atos eleitorais são sempre protagonizados por um organismo semelhante, assessorado por uma resma de observadores internacionais. Processo que nesses países é a demonstração da desconfiança nos mecanismos e órgãos de soberania existentes.
Aqui está, pois, mais um absurdo, ultrapassável pela conjugação de uma administração pública independente e de confiança, aliada a regulamentos escorreitos, boas leis e tribunais atentos e com rápida capacidade de resposta.
A Comissão Nacional de Proteção de Dados, pela sua lentidão, omissão e sentido contraditório das suas decisões, já devia ter entrado para o anedotário nacional.
É sabido que no quotidiano as forças de segurança e investigação criminal utilizam os ficheiros de câmaras de vigilância e gravação, espalhadas por bancos, condomínios e casas comerciais. Todas, ou a maior parte, ilegais. Contudo, a douta comissão, sempre ao fim de anos de profundas reflexões, proíbe autarquias de vigiarem zonas problemáticas, decide que se pode vigiar Fátima mas sem som, ou Coimbra sem gravação. De tudo um pouco, sem critério, sem senso. Aí temos outra área onde a lei e os tribunais resolveriam todas as questões.
Sobre a Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, só me sai um comentário. É uma solução ridícula e hipocritamente desresponsabilizante.
A hipocrisia decorre do facto de o Governo, na prática, nomear a Comissão, mas depois poder dizer que as nomeações públicas passaram a ser genuinamente independentes.
É ridículo alguém que foi competente para ser presidente da República ou ministro ter de passar por esse crivo, é descredibilizante que, como aconteceu ainda há poucos meses, se julguem esses elementos uns aos outros, para ter acesso a altos cargos.
O princípio da audição parlamentar prévia à efetividade de algumas nomeações ainda seria aceitável. Quanto ao mais, é uma obrigação e um direito de cada Governo rodear-se dos que, em seu juízo, melhor servem os seus desígnios e serem posteriormente julgados pelos resultados obtidos.
Finalmente, o Tribunal Constitucional. Matéria mais séria. Porque fere a autoestima de muitos dos pais da Constituição, porque conflitua com o debate académico, porque a sua discussão pode ser confundida com matérias que conjunturalmente lhe dão particular visibilidade.
Todavia, não é crime ter uma opinião diversa. A de que esse órgão poderia ser substituído com vantagem por uma secção específica do Supremo Tribunal de Justiça. A favor deste argumento ajuda informar os cidadãos que este tribunal não é um estrito juiz da constitucionalidade da produção legislativa, mas sim, principalmente, o último órgão de recurso da maioria dos tribunais superiores, onde emperram anos milhares de processos que são responsáveis pela ideia de inoperância e lentidão de todo o sistema judicial.
Senhores ministros, isto também devia estar na agenda de uma verdadeira reforma do Estado. Haja coragem.
P.S.: Este texto nada tem a ver com a indiscutível qualificação profissional de muitos dos titulares destes cargos, mas os portugueses morreriam de dores de cabeça se consciencializassem que, por exemplo, só os titulares da CRESAP ganham 7000 euros brutos por cabeça e que, para além destes órgãos, ainda existem, com aparentado interesse, o Instituto de Seguros de Portugal, a Autoridade da Concorrência, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, a Autoridade Nacional de Comunicações, a Entidade Reguladora de Águas e Resíduos, etc., etc., etc.