Rui Rio foi presidente da Câmara do Porto 12 anos. Com os seus mandatos catapultou-se para putativo líder do PSD, candidato a primeiro-ministro e até para credível candidato à Presidência da República.
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Ao contrário de outros autarcas marcantes, Rio consolidou este estatuto numa lógica não obreirista. Rio não conquistou o atual estatuto pela obra feita, que com a exceção do lavar de cara de alguns bairros sociais e do relançamento tímido do conceito de reabilitação urbana, foi escassa e irrelevante.
Rio geriu politicamente com demagogia, mas com enorme mestria, uma imagem de marca. O político anti-interesses, o gestor financeiro rigoroso, o homem público distante e austero.
Para cimentar a última referência bastou-lhe estar três mandatos longe das festas da cidade, dos convívios associativos e fazer quase sempre um fim de semana prolongado no seu retiro minhoto. Uma atitude monástica laica passou a povoar o espírito dos eleitores. E resultou. O imaginário popular ama ser castigado e não aprecia os políticos que pode "palpar". Meio século desse estilo deixou marcas e adeptos para gerações.
Para colocar o país vidrado no político antipoderes estabelecidos, chegou a enfrentar o Futebol Clube do Porto e o seu líder, com o simbolismo de o fazer na década dourada da sua afirmação mundial.
É verdade que não tinha razão, que o Plano de Pormenor das Antas foi bem conceptualizado e modernizou a cidade, mas o divórcio da tribuna do Dragão doou-lhe o amor de um pensamento comunitário que inveja os vencedores.
Finalmente as contas parcialmente corrigidas, mesmo que à custa de um evidente imobilismo, colaram magnificamente no Portugal que ainda lambe as feridas dos desvarios financeiros do Estado e da sofrida receita "troikiana". Neste último caso é curioso que a tal correção das contas deveria ter passado pela anatemização radical do seu antecessor, Fernando Gomes, como um indesculpável "despesista".
Paradoxalmente Rio conseguiu com a afirmação desse arquétipo condicionar o futuro mas não rescrever o passado.
Ainda bem, assim Gomes, com inegável justiça, continuará a pairar por muitos e bons anos como tendo sido o grande presidente da Invicta em democracia. Referências como o Parque da Cidade, como o Porto Património da Humanidade, como o Porto Capital Europeia da Cultura são perenes e estão na base de uma persistente réstia de esperança coletiva.
Nem sempre a história é injusta.
Mas a que propósito vem esta longa lengalenga introdutória? Vem a propósito da defesa da crença sobre a quase fatalidade de ser impossível contrariar um bom juízo histórico, uma vez assente a poeira do circunstancialismo enganador. E isto a propósito do atual primeiro-ministro e do seu consulado.
É verdade que nunca os portugueses viram o seu nível de vida decair tanto em tão poucos anos, é óbvio que vivem centenas de milhar dos nossos concidadãos no limiar da indigência, com particular destaque negativo para idosos e pensionistas. É também lastimável assistir à emigração compulsiva de jovens, muitos com formação superior, ou observar o desemprego destruidor da identidade e autoestima de centenas de milhar.
É ainda uma constatação indiscutível que nunca tantos portugueses protestaram contra um Governo e desejaram a sua partida.
Todavia, lá vem outro paradoxo. Nunca após a revolução democrática houve um chefe de Executivo tão marcante para todos nós.
Passos Coelho percebeu que não havia alternativa ao cumprimento dos compromissos impostos a Sócrates. Assim, perseverou e resistiu. Em política a fantasia nunca colhe. As reformas realizadas ou indiciadas eram obrigatórias - na justiça, na legislação laboral, no redimensionamento do Estado social.
Mas foi na separação drástica do Estado do mundo pantanoso dos negócios cinzentos que o atual PM mais marcou a diferença.
Terminou com as "golden share" promíscuas, apostou na qualificação dos reguladores, continuou a militar na sua vida de subúrbio e de férias modestas em Manta Rota. À crítica de provincianismo estreito sobrepõe-se a naturalidade de quem é autêntico, para o bem e para o mal.
Mas é essa a distância que vai do BPN ao BES, de Constâncio a Carlos Costa, da defesa de acionistas protegidos à dos milhões de contribuintes anónimos.
Estes retratos servem para afirmar a tal certeza/esperança de que perdurará sempre o que for mais próximo da verdade, tida em democracia como a defesa corajosa do bem geral.
Assim, não existem dogmas sacralizáveis sem contraditório. O da observação dos resultados.
Estes exemplos só ilustram verdades quotidianas quase "la palacianas". Por definição nem todo o obreirismo é pecaminoso, nem toda a austeridade é virtuosa.
As realizações onerosas de Gomes catapultaram o Porto para um patamar superior e a austeridade implacável de Passos deixará um Portugal liberto das grilhetas de um passado recente que nos envergonha.
O resto desaparecerá da história como uma leve brisa de verão.
PS - Está a cessar funções Manuel Tavares. Um enorme cidadão, um jornalista ímpar, um grande Diretor. Deixa saudades e a certeza de que o seu jornal gerará um sucessor da sua dimensão.