Parecia que estávamos de regresso a um telejornal de março ou abril. Escalpelizavam-se números a nível nacional, detalhavam-se números regionais, faziam-se apontamentos de reportagem onde quer que houvesse um caso, mostrava-se o repórter junto a um lar, voltava-se aos números em estúdio, desta vez por escalões etários, viajava-se para Norte, onde o veterano de guerra de Ovar pedia intervenções musculadas na capital. Vinha aí, portanto, o apocalipse.
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Não é ironia, vinha mesmo, ainda que o apresentador do telejornal não pareça ter reparado. Foi preciso esperar 30 minutos - que um editor sensato teria resumido em dez - mas chegou, de facto, a notícia do apocalipse e aquela que justificaria bem mais do que os dois minutos com que a despacharam: os desempregados inscritos nos centros de emprego ultrapassaram os 400 mil (mais 100 mil do que em maio do ano passado). Mais ainda do que os tremendos efeitos na saúde pública, esta é a grande tragédia coletiva que chega a reboque da pandemia. Uma pandemia imprevisível que exige uma democracia madura e dirigentes políticos menos suscetíveis à histeria das redes sociais e ao espetáculo televisivo. Qual é a surpresa? Estavam à espera que, depois da quarentena, o vírus tivesse desaparecido? Acreditaram no milagre português inventado por jornalistas espanhóis com motivações políticas internas? Leram no Facebook de um amigo da onça que no verão já havia vacina? Desenganem-se. Esta pandemia andará por cá, provavelmente, por vários anos. Muitos serão contagiados. Alguns ficarão bastante doentes. Um número ainda mais pequeno, sobretudo pessoas com outras doenças e de idade avançada, vão morrer. Vamos ter que nos habituar. O regresso à épica do confinamento, ao heroísmo literalmente de vão de escada, ao romantismo dos arco-íris e das salvas de palmas à hora certa, ao hino cantado na varanda, não é uma opção aceitável. Talvez valha a pena ser uma nação valente, mas esqueçam a parte de ser imortal. Marchar contra os canhões é bonito, desde que com medidas de higiene e contenção social, por um lado, e decisões sensatas por parte de quem nos governa, por outro. Prevenção em vez de proibição, neurónios em vez de músculo.
*Chefe de Redação