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A passagem do ano nunca mais foi a mesma desde que nos faltou aquele vizinho do andar de cima que tinha um cão chamado fadista. Ele vinha de caçadeira à varanda, enfiava dois cartuchos de calibre 12, apontava ao céu, virado a norte, e pumba, pumba.
- Já foste, ano velho, morreste! Viva o ano novo! Bom ano!, brindava o meu avô. Bem podiam as 12 badaladas bater na torre e tocar ave-marias. Mas só tínhamos a certeza de que o ano velho já foi depois de estremecer com aqueles dois tiros fatais num tempo que não tem retorno. Ouvíamos então o fadista armar-se em lobo, e em vez de ladrar uivava.
- O cão não chora, canta ao ano novo, explicava o meu avô, que sabia ler, assinar e fazer contas. Quando um dia o ouvi dizer que "pedra mudada não cria musgo", ele estava a ensinar-me, e eu sem saber, a primeira das leis da mecânica clássica. A primeira lei de Newton afirma que um objeto permanecerá em repouso ou em movimento uniforme retilíneo a menos que uma força externa atue sobre ele. Dito de outra forma: nada mudará nas nossas vidas se não tentarmos fazer por isso. O que é mais difícil de entender, pergunto-me eu, é porque todos os anos insistimos em obter resultados diferentes fazendo, repetindo, exatamente o mesmo. Porque insistimos em esperar o milagroso começo de um ano para arriscar os nossos propósitos? Como se fosse possível apagarmos da memória os nossos fracassos e omissões, ajustando o contador a zeros. E o princípio, que é válido para cada um de nós, não pode deixar de o ser também para a política e para a economia.
Olhando pelo retrovisor, há nas nossas vidas um tempo feliz e despreocupado, em que o tempo corre muito devagar. Crescemos sem um horizonte temporal claro, como se houvesse sempre um amanhã. Condescendemos às tias e avós, professores de cabelo brancos, e vivemos cercados por suas excelências ministros, deputados e comendadores com cabeças muito limpas para tão farto cabelo - e até atores que devem ter sido jovens, mas quem se lembra disso? Vendo-os, achamos sempre que são, basicamente, velhos. As crianças, sempre muito filosóficas, chegam rapidamente a duas conclusões: que os velhos são os outros, aliás, são sempre os outros. O tempo, porque o tempo passa, encarrega-se de envelhecer ou esgotar as duas. E, no final, as três: as conclusões e as crianças que todos fomos.
O tempo é o único recurso que não permite reposição. Não há retorno. E porque hoje é o último dia do calendário gregoriano, que convencionámos, amanhã é um bom dia para não adiarmos o ano novo, deixando que nos pequenos sonhos ainda caiba a memória de um cão chamado fadista. Saúde. E bom ano!
*DIRETOR