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Quando percebi que o país estava emaranhado numa polémica com bases religiosas, fiquei entusiasmada por achei que fosse por aquela pouca-vergonha de já se vender bolo-rei no supermercado. Fiquei muito desapontada porque, se havia uma conversa que devíamos ter todos e que nos devia fazer pensar em que sociedade é que queremos viver, era a do Natal ser cada vez mais cedo. É que ainda nem sequer passámos o Halloween e já temos bolinhas de Natal iluminadas. Eu própria, esta semana, tive um desejo súbito de fazer sonhos de abóbora. Temos de pôr termo a isto de uma vez por todas, ou então, para o ano, estamos de arquinho e balão a fazer o comboinho ao som da Mariah Carey. Enfim. Infelizmente, em 230 deputados, não há uma alminha interessada em legislar sobre isto. Quando voltarmos a ser chamados a votar, não me vou esquecer disto.
O que foi aprovado na generalidade, pela Direita parlamentar que é conhecida por achar que o Estado deve interferir o menos possível nas liberdades do cidadão, foi uma lei que proíbe o uso de roupas que impeçam a exibição do rosto no espaço público com o risco de multa que vai das centenas aos milhares de euros. A minha prima tem casamento marcado para o ano e já lhe disse que, se não quer gastar os envelopes com dinheiro em multas para o Estado, é melhor mandar o véu para trás.
Neste projeto incluem-se eventos desportivos, o que é uma má notícia para a malta que está a pensar em fazer desportos de inverno na serra da Estrela. De qualquer forma, percebe-se que o alvo desta lei não são os atletas de ski que vão ter agora de comprar litradas de protetor solar para praticar a modalidade, mas a comunidade islâmica em Portugal, em especial as mulheres. O tema da indumentária religiosa é complexo e tem muitas nuances, porque não se libertam mulheres, marginalizando-as. Mas isso não inibiu termos deputados a discutir isto com todas as certezas, afirmando que a sua preocupação é proteger estas mulheres. Eu tenho algumas dúvidas. O autor da proposta foi o partido de extrema-direita: o partido que faz mugidos quando deputadas passam, foi o grupo parlamentar que tem deputados a achar digno que uma criança, no caso de engravidar, tenha de dar à luz, o partido que divulgou sempre que pode o nome de crianças, filhas destas mulheres. Por isso, certamente que não levarão a mal se disser que é muito difícil acreditar que têm algum interesse real em protegê-las.
As peças proibidas são a burca, que tapa completamente o rosto e o corpo e o niqab, que só deixa os olhos livres. Pessoalmente, gostaria que nenhuma mulher os usasse. O rosto é uma parte importante da nossa identidade e estas são indumentárias que reduzem a mulher a uma sombra. Considero-as a imagem de uma desigualdade de género primária que as invisibiliza. Seja porque as querem usar, seja porque são obrigadas a usar, a consequência de proibi-las é manter estas mulheres fora do espaço público. Não cabe ao Estado, ao marido, ao pai, ao representante religioso, dizer o que alguém pode ou não vestir. O valor fundamental é a liberdade de cada um vestir ou despir o que quiser. Se queremos realmente proteger estas mulheres, a lei deveria ser concentrada em dificultar mais a vida destes opressores e penalizá-los severamente. Porque como está feita, a penalização recai mais uma vez nas mulheres que forem apanhadas a usar, seja com multas ou mais isolamento. Porque, não entendam mal, mas a igualdade de género em determinadas culturas é tema que merece e precisa de ser discutido. Mas tudo isto deixa muito pouco espaço à importância da pedagogia ou a estratégias de integração que permita uma aculturação saudável para uma sociedade em que homens e mulheres usufruem de direitos iguais. Mas dado o contexto em que isto foi apresentado, também não me parece que tenha sido este o objetivo. Os vídeos do TikTok não teriam tantos likes e partilhas. Porque o facto é que a Internet enlouqueceu com esta medida que vai obrigar a destapar o rosto e são milhares os comentários eufóricos. Ironicamente, com muitos tipos que usam nomes e fotos de perfil falsos.
Se tivesse de apostar, diria que mais de metade das pessoas que comentou esta notícia não faz a mínima ideia das muitas e variadas indumentárias usadas por mulheres muçulmanas e das diferenças entre elas. Se nem sabem a diferença entre uma saia-godé ou uma saia-lápis, quanto mais. Dado que a utilização de burcas ou niqabs é estatisticamente residual e, em Portugal, não é sequer promovida pelas instituições religiosas, no final das contas, a minoria que realmente vai sofrer mais com isto é a que vai às manifestações dos grupos nacionalistas que agora vão ter de mandar o seu bestseller de merchandising para o lixo.