No Brasil joga-se o futuro da democracia
Embora já não sobrem mais de 10 dias, é ainda possível derrotar o candidato neofascista a presidente do Brasil.
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Para o conseguir, é preciso que muitos dos que votaram nele na primeira volta arrepiem caminho e decidam, no dia 28 de outubro, votar em Fernando Haddad... ou, em alternativa, que optem por votar nulo ou em branco. Não há 50 milhões de neofascistas no Brasil. Muitos dos que votaram em Bolsonaro estão zangados com o PT e com as promessas que os seus governos deixaram por cumprir, estão exasperados com a insegurança que ameaça as suas vidas, estão cansados de uma corrupção endémica que a democracia veio expor de forma ainda mais flagrante e, claro, estão dececionados com o fim de um ciclo de progresso inédito que permitiu aos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula da Silva tirar milhões de brasileiros da miséria mais extrema. Esta insatisfação não é uma singularidade brasileira. Bem pelo contrário! Só para enumerar os casos mais recentes, atente-se nos resultados obtidos pela extrema-direita em Inglaterra, na América do Norte, na Áustria ou em Itália. Um antigo líder da KU-Klux-Klan, apoiante de Donald Trump e adepto dos "supremacistas brancos", dizia sobre Jair Bolsonaro: "Ele soa como nós"...
A crescente interdependência nas relações internacionais - dramaticamente acelerada pela globalização económica e financeira - teve um impacto extraordinariamente perverso no funcionamento da democracia representativa e agravou todas as dificuldades e vícios que desde a velha Atenas lhe foram impiedosamente apontados ao longo de 2500 anos. O próprio Tocqueville, no primeiro ensaio moderno sobre uma experiência democrática - ainda que incipiente e limitada, nos Estados Unidos da América - confessava a sua perplexidade e ceticismo. Indiferentes aos sinais que anunciam de forma cada vez mais assustadora a possibilidade de Jair Bolsonaro sair vitorioso da segunda volta das eleições presidenciais, os democratas brasileiros continuam remetidos a uma passividade indesculpável. Este não é o tempo para ressentimentos e cálculos eleitoralistas de médio ou longo prazo. Se as forças democráticas não conseguirem transferir os votos dos seus tradicionais eleitores para Fernando Haddad e Bolsonaro assim conseguir ser eleito, ninguém sabe quando haverá de novo eleições no Brasil nem, se as houver, em que condições serão disputadas.
A tudo isto, soma-se a descarada manipulação das redes sociais transformadas no veículo principal da campanha de Bolsonaro. Uma campanha empenhada na invenção despudorada de notícias falsas e caluniosas contra o seu adversário mas que o ajudam a subir nas sondagens de opinião sobre as intenções de voto e as preferências dos eleitores. A Internet transformou-se num território sem lei nem ordem, dominado por especialistas informáticos, analistas, matemáticos, psicólogos comportamentais e, sobretudo, por uma ganância ilimitada e sem escrúpulos. À deslocalização das empresas, à desregulação económica e à hegemonia do capital financeiro internacional, junta-se agora o mercado aberto dos dados pessoais. Tudo o que era interdito ou reprovável no mundo real - a violação da liberdade de consciência e da autodeterminação individual, o respeito pela reserva da intimidade privada ou pelo sigilo da correspondência, a calúnia e a difamação - tornou-se inocente ou vulgar no universo virtual. O debate, o contraditório, o benefício da dúvida renderam-se ao óbvio e à ânsia de certezas. Como disse acima, não se trata de uma singularidade brasileira. Um triste fim aguarda as nossas democracias caso não saibamos enfrentar de forma resoluta e eficaz esta ameaça inédita e fatal.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL