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1 Ainda o ano velho não tinha terminado e já sabíamos que Marcelo Rebelo de Sousa não encontrou motivo para requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade da deplorada lei do financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais. Sem tal impulso, o Tribunal Constitucional, supremo garante da constitucionalidade das leis, não teve a oportunidade de avaliar preventivamente se a dita lei viola ou não qualquer preceito da lei fundamental, quer no que diz respeito ao seu conteúdo quer no que respeita ao procedimento institucional adotado. Apesar da veemente indignação que suscitou - por vezes apócrifa e até hipócrita! - continuo a não perscrutar no corpo da lei qualquer vício grave que pudesse fundamentar uma declaração jurisdicional de invalidade. E penso o mesmo quanto ao procedimento seguido, sem prejuízo da pertinência de prestar um esclarecimento institucional - porque tenho o encargo de presidir à Comissão Parlamentar competente - e de retirar uma lição positiva deste processo que foi, no mínimo, "esquisito"...
2. A lei foi aprovada pela Assembleia da República a 21 de dezembro, mas dois meses antes tinha sido distribuída a todos os deputados que integram a Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e logo foi inscrita no ponto 2 da ordem de trabalhos da reunião de 18 de outubro. O projeto elaborado pelo grupo de trabalho constituído para esse efeito foi apresentado pelo respetivo coordenador e não foi objeto de qualquer pedido de esclarecimento, algum reparo ou uma única sugestão, tal como consta da ata da reunião que, aliás, foi aberta ao público e gravada pelos serviços competentes da AR. Dessa reunião apenas estiveram ausentes o deputado do PAN - que não integra esta Comissão Parlamentar - e o representante do PEV. Em consequência, o texto final do grupo de trabalho - confortado pelo consenso geral que mereceu dos seus autores e do plenário da Comissão que se dispensou de o debater - foi enviado às direções de todos o grupos parlamentares - nesse mesmo dia! - e foi por fim debatido no plenário da Assembleia da República, dois meses mais tarde.
3. A deficiente participação e o parco debate público que o diploma em causa mereceu são agora inquestionáveis. Uma constatação que naturalmente recomenda que sejam ponderados eventuais ajustamentos regimentais que melhor garantam a defesa dos valores da transparência, da publicidade e da participação democrática que devem orientar o exercício da função legislativa e que são inerentes à própria natureza da instituição parlamentar. Neste mesmo sentido me pronunciei em declarações prestadas no dia 26 de dezembro, ao diretor do jornal "Público", publicadas na edição de quinta-feira e reafirmadas em todas as declarações que me foram solicitadas por outros jornais, rádios e televisões nas 24 horas seguintes.
4. O presidente da República agiu em rigorosa harmonia com as suas atribuições constitucionais e no dia 2 de janeiro de 2018, perante o alarme público suscitado, decidiu devolver o diploma à Assembleia da República, sem o promulgar. Não invoca qualquer vício de inconstitucionalidade. É um veto político fundamentado na insuficiência da "Exposição de motivos" que apresenta o diploma mas onde não se justifica nem a revogação do "limite global ao financiamento privado" nem a manutenção do "regime de isenção do IVA". Destas opções legislativas, refere, "não existiu uma palavra de explicação ou defesa no debate parlamentar em plenário, o único, no caso vertente, passível de acesso documental" pelos cidadãos. Pelo contrário, não suscita objeções quanto às alterações introduzidas na fiscalização das finanças partidárias, matéria que justificou a urgência da intervenção legislativa e a adoção de procedimentos mais expeditos.
5. Temos agora a possibilidade de esclarecer as apreensões legítimas dos cidadãos, de prosseguir o debate e de suprir as insuficiências que as atribulações recentes exibiram, a bem da democracia e da dignidade do Parlamento.
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL