Por força da Lei Fundamental, a aprovação de uma moção de censura ao Governo implica a sua demissão. A moção apresentada pelo grupo parlamentar do Partido Socialista, como se previa, foi derrotada na passada quarta-feira com 131 votos dos deputados do PSD e do CDS, tendo obtido os 97 votos favoráveis de todos os deputados da Oposição presentes. Mas teria bastado o voto de 19 deputados dissidentes - do CDS ou do PSD - para que a moção de censura fosse aprovada e o Governo demitido. Não se trata de um mero exercício aritmético.
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A "dissidência" é uma atitude legítima e frequente nas democracias liberais porque os deputados "exercem livremente o seu mandato", ficando a obediência à disciplina partidária sujeita aos ditames da consciência de cada um. O célebre deputado do "queijo limiano" protagonizou um incidente cómico na nossa mais recente história parlamentar mas garantiu a aprovação do Orçamento do Estado do último governo de António Guterres e o deputado - dissidente do CDS - não sofreu qualquer penalização por isso e até foi indicado pelo mesmo partido para funções de secretário de Estado no atual Governo. A moção de censura é o equivalente político do "xeque ao Rei" no jogo do xadrez.
Ainda que rejeitada, a censura não se reduz a um gesto meramente simbólico: não acabou o jogo, é certo, mas condicionou os movimentos do adversário, eliminou alternativas, impôs-lhe limitações estratégicas ou o sacrifício de peças, e pode até ser o prenúncio de um "xeque-mate".
A apresentação desta moção de censura tem ainda a inestimável virtude de clarificar alguns dos princípios elementares que regem o funcionamento das democracias. O Governo é politicamente responsável perante o Parlamento porque este é "a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses". A legitimidade para governar conquista-se pelo voto dos eleitores. A legitimidade para governar foi inequivocamente conquistada por esta maioria nas eleições legislativas de 2011 que conferiram ao PSD e ao CDS a maioria absoluta dos assentos disponíveis na Assembleia da República para que cumprissem as promessas contidas no seu programa, defendidas e proclamadas ao longo da campanha eleitoral.
O Governo, porém, rapidamente se desembaraçou do "contrato" que estabelecera com os eleitores e das políticas que prometera e adotou em seu lugar os termos do acordo internacional para o resgate financeiro do país. Trocou a confiança dos eleitores pela satisfação dos credores, a legitimidade democrática pela boa reputação negocial, a "vontade popular" pela "vontade da troika". O "memorando de entendimento" transformou-se no seu programa político, aplicado, reinterpretado e reformulado conforme as suas próprias conveniências e fracassos, em reuniões discretas e confabulações reservadas com os funcionários da troika. Um negócio vantajoso que assim remetia o ónus da impopularidade das suas políticas para uma entidade "estrangeira" que não carece da legitimação democrática de ninguém. E assim pretendia também o Governo dispensar-se da necessidade de complexas negociações com a Oposição e minuciosas explicações aos eleitores defraudados, que a situação do país exigia e recomendava. Ficou por fim claro que cabe exclusivamente à maioria, a responsabilidade pelo fracasso da governação.
"Obituário"
É neste contexto e nesta oportunidade que se anuncia a saída de Miguel Relvas, uma clamorosa farsa que pretende transformar a poeira pestilenta que pairava sobre a figura do ex-ministro, numa auréola de martírio. Farsa a que não falta o "elogio fúnebre" que Miguel Relvas dedica ao seu próprio cadáver político, impaciente pelo "juízo da história" que não resistiu a antecipar, na expectativa porventura bem fundada de que terá acabado finalmente a intolerável complacência de que desfrutou até aqui.