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Nada como folhear um álbum de fotografias para percebermos as mudanças, lentas mas continuadas, que o passar dos dias traz consigo. Com o digital perdeu-se esse hábito. Vêem-se as fotografias ou filmes mais recentes, tudo o que é mais antigo fica perdido em arquivos de centenas ou milhares de fotografias a que nunca voltaremos. Talvez seja um sinal dos tempos - vive-se a espuma dos dias. A não ser que haja um pretexto para voltarmos a olhar o passado. Um aniversário "redondo": os 40, por exemplo. Se para os humanos 40 anos é muito tempo, para um país quase milenar há-de haver um acontecimento marcante para a data ser celebrada. No caso, o 25 de Abril de 1974, a data da restauração da democracia. Celebrada enquanto houver memórias da mudança, do seu impacto e relevância e que, como o 1.0º de Dezembro ou o 5 de Outubro (data de celebração do Tratado de Zamora, que consagrou o reconhecimento de um país de nome Portugal) estará sujeita aos humores das circunstâncias.
Tal como não damos conta das mudanças lentas, tendemos a sobrevalorizar tudo o que altera as nossas rotinas, transformando-as em desgraças, quando só a história, e as verdadeiras tragédias, permitirão aferir o seu real impacto.
Acrise em que temos estado envolvidos tem motivado muitas reacções do segundo tipo. Não raro, num daqueles fóruns que por aí pululam, aparece um saudosista a afirmar que isto está pior do que antes do 25 de Abril ou, numa versão de esquerda, que estão em causa as "conquistas de Abril", seja lá isso o que for. É bom, por isso, que a Comunicação Social esteja a aproveitar a efeméride para nos recordar o país que éramos e quanto caminho foi percorrido, mesmo que nos três últimos anos possam ter havido alguns passos atrás (e não nos esqueçamos que, numa corrida, é sempre possível enganarmo-nos no caminho...). Essas comparações podem ter uma base quantitativa (por exemplo, o rendimento médio por pessoa) ou qualitativa (escolaridade, cobertura na doença, pessoas com pensões de reforma, etc.). E podem, e devem, envolver cotejos com terceiros que nos permitirão perceber que, alguma da lamúria que tem invadido o espaço mediático, é quase uma "ofensa à pobreza".
Nos últimos anos tem havido vários esforços para produzir bases de dados que permitam ter uma ideia abrangente do desenvolvimento de um país que, não descurando o valor da riqueza produzida, nos diga onde nos posicionamos, por comparação com terceiros, em vários indicadores relevantes. Um dos contributos mais recentes tem como "pai" Michael Porter, conhecido de muitos pelas suas análises e propostas no campo da economia e estratégia empresarial. Sob o seu impulso e coordenação, surgiu o projecto "Social Progress Imperative". Diz-se na sua apresentação "numerosos estudos identificaram uma elevada correlação entre crescimento e um grande número de indicadores sociais e, no entanto, há a consciência crescente de que as medidas económicas por si só não captam a totalidade do progresso social" (http://www.socialprogressimperative.org/). Convido-o a acompanhar-me numa breve visita. Estão mapeados mais de 130 países. Portugal ocupa o 22.0º lugar no índice geral, a 20.ª posição no que diz respeito à cobertura de necessidades humanas básicas, o 19.0º lugar nas oportunidades concedidas (embora com lacunas nas condições de acesso à educação superior) e apresenta as maiores fragilidades na dimensão "fundamentos do bem-estar" , devido à má classificação obtida no indicador da sustentabilidade do ecossistema. Há áreas de excelência (6.0 lugar no respeito pelos direitos das pessoas e 9.0 no acesso ao conhecimento básico), áreas em que podemos melhorar (saúde e bem-estar) e áreas preocupantes (gestão dos recursos hídricos - lugar 101!). Estes exercícios têm a vantagem de mostrar que, com todos os nossos problemas, continuamos a fazer parte de uma elite mundial. Faz ideia onde estaríamos em 1974? Há domínios em que temos de melhorar e prioridades a rever. Queremos? Podemos?
O dia amanheceu soalheiro. Agora, chove. Há-de passar!
O autor escreve segundo a antiga ortografia