<strong>I</strong> - O Porto engana. De vez em quando dá a sensação de descolar, cria a ilusão de que agora é que é, mas depois afinal não.
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E de repente pusemos todos a mão na anca para discutir se Paulo Cunha e Silva leu ou afinal tresleu Zygmunt Bauman. E se atacar uma pessoa que já morreu é apanágio legítimo da liberdade de expressão ou apenas um insulto escusado. E se o faquir da censura varia de acordo com cada sensibilidade ou se é um valor absoluto. E se é possível ver realidades diferentes consoante a janela de onde se olha ou se essa subjectividade é oportunista. A verdade é impermeável e indivisível? Tennessee Williams ensinou-nos que não.
Paulo Cunha e Silva, que nem nos seus sonhos mais ufanos terá imaginado ter tantos porta-vozes da sua maneira de ser, haveria de ficar satisfeito com o pó que subitamente se levantou do chão do burgo. Mas depois tudo isto é afinal bastante triste. Porque uma cidade não se constrói com clubes e claques. O Porto é uma cidade On/Off. Uma cidade de lampejos cadentes, eternamente condenada a não sair do lugar. Dizê-lo não é fazer futurologia, é olhar para o passado e perceber a imobilidade do padrão. Mas talvez isto nem sequer seja sobre o Porto, talvez tudo isto seja penosamente sobre o país.
II
Muitos de nós ainda não éramos nascidos e já Regina Guimarães tinha fundado a Hélastre, essa espécie de reino mágico do conhecimento onde tantos de nós já teremos ido, aqui e ali, beber informação, inspiração, beleza. E amor. O amor devia fazer parte do nosso curriculum vitae. A dramaturga Regina Guimarães e o cineasta Serge Abramovici estão juntos há quase 50 anos. Peço desculpa se parece indiscrição, creio que não é. Não peço desculpa se não parece pertinente, creio que é. Porque provavelmente nenhum de nós poderá algum dia exibir diploma afetivo tão cintilante. E porque não conheço ninguém que tão bem tenha personificado um ideal de fusão, também criativo. Juntos escreveram alguns dos ensaios mais eloquentes sobre esta cidade caleidoscópica, juntos protagonizaram algumas das conferências mais inesquecíveis sobre o tempo que passa em cada momento, juntos deram sempre a cara por causas e lições de vida com o exemplo, e juntos mantiveram o mais laborioso pilar da existência em comunidade: a coerência. Por isso, como um destes dias notou Carlos Costa, diretor da Plateia, "no Porto, em particular, os artistas mais jovens ainda solicitam a Regina Guimarães que escreva por eles os textos que legitimam a relação entre o que se passa no palco e o que se passa na sociedade".
Daí, a estranheza. Como pôde Regina Guimarães, mente brilhante e autora de poemas que muitos de nós saberemos de cor mesmo talvez sem sabermos que lhe pertencem, ter escrito que Paulo Cunha e Silva "inundou" a cidade "de discursos delirantes acerca da cidade líquida inspirada em Zygmunt Bauman, no intuito de legitimar teoricamente as escolhas políticas na sua área de atuação, positivando, por ignorância ou descarada mentira, uma noção que, para o sociólogo inventor do conceito, consubstancia o horror contemporâneo da perda de laços"?
Custa escrever isto de alguém que genuinamente se admira, mas é Regina Guimarães quem, "por ignorância ou descarada mentira", acusa Paulo Cunha e Silva de ter feito o que não fez. Não fez, nem precisava. Paulo Cunha e Silva era um génio, um malabarista de conceitos. Pegava neles, dominava-os e subvertia-os - com prazer, ainda por cima -, sempre no intuito de criar um pensamento novo e optimista. Era médico, procurava soluções. E, coisa rara, raríssima, colocava o que pensava em prática. Que 90% das pessoas que falam de Paulo Cunha e Silva acreditem que ele nasceu quando Rui Moreira ganhou as eleições em 2013, não surpreende. Que 90% nunca tenha lido a sua tese de doutoramento - "O Lugar do Corpo - Elementos para uma Cartografia Fractal" (Instituto Piaget, 1999) - e ignore que a semente que deu origem ao seu programa de cidade estava já afinal plantada há mais de quinze anos, surpreende ainda menos. Mas Regina Guimarães?!
(Declaração de interesses: li a tese de Paulo Cunha e Silva três vezes. Precisava de entendê-la, porque escrevi um livro sobre Paulo Cunha e Silva ("751 Dias - O Tempo não Consome a Eternidade"), na sequência de um convite lançado, no final de 2015, pelo presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira.)
Calma! Zygmunt Bauman não é George Steiner. Com o devido respeito pelo primeiro, o filósofo será pouco mais do que, passe o exagero, um autor de aeroporto. E se Anish Kapoor ousou patentear o preto, a cor, Bauman não arriscou patentear o líquido, o estado. Mas mesmo que o tivesse feito, inibindo-nos a todos de fazer metáforas semelhantes ou antagónicas, passa pela cabeça de alguém que habite esta cidade, mesmo que só conhecendo vagamente Paulo Cunha e Silva, que ele tivesse cometido um "erro, propositado ou involuntário", na sua apreciação da obra do autor polaco?
Vale a pena citar Jorge de Sena, outro bem-mal-amado do rectângulo que, não por acaso, se pôs a andar: "Eu, por mim, limito-me a solicitar que as pessoas, antes de discutirem seja o que for, leiam aquilo que discutem. Se não o fizeram, como sucedeu com a minha antologia, são levianos. Se o fizeram e fingem que eu não justifico claramente o meu trabalho, são cobardes. E, em qualquer das hipóteses, são desonestos."
Eis uma das dezenas, talvez centenas, de explicações que Paulo Cunha e Silva deu sobre a sua versão da cidade líquida:
"Fui buscar ao Zygmunt Bauman a ideia de cidade líquida. Ele fala na sociedade líquida, uma sociedade da desvinculação, do não acontecimento. Na sociedade líquida, as pessoas não se vinculam porque não se agarram. Os líquidos criam superfícies de desvinculação, de descontinuidade. Mas a minha ideia é a inversa. Ou seja, numa cidade líquida, se houver correntes com sentido contrário, o que pode acontecer é que, de acordo com a mecânica de fluídos, quando correntes de direção contrária se encontram há um vórtice, um turbilhão..."
A nota de rodapé de Regina Guimarães é, por isso, populista, injusta e sobretudo falsa. Mas, o que é igualmente triste, é cobarde. Porque num texto que dispara acusações em imensas direções - a começar pela "classe dos artistas", mas também "a classe média que se considera culta" e o "povo de esquerda" e os especuladores imobiliários -, a autora só teve coragem para dar nome a uma pessoa: a única que já cá não está. O resto foi todo metido no saco da abstração.
Dirão que isso é legítimo, que isso é apenas "discutir as ideias" de Paulo Cunha e Silva. Não é. Discutir as suas ideias, mesmo reprovando-as veementemente, seria falar da nova roupagem que deu à Feira do Livro, ou da visão que defendeu para a arte pública, ou do lugar de honra que atribuiu ao Teatro Municipal ou de tantas outras ideias que produziu e promoveu. Incluindo a própria ideia subjacente à sua reinvenção do conceito de cidade líquida, que facilmente se resume numa palavra: democratização. E isso seria válido hoje como daqui a cem anos. Mas Regina Guimarães não discutiu qualquer ideia de Paulo Cunha e Silva. Insultou-o. Só isso. E defender o direito que Regina Guimarães, ou outra pessoa qualquer, tem a fazê-lo, não é defender o direito à liberdade de expressão. É defender o direito ao insulto e à proliferação de fake news, que Regina Guimarães também critica.
Conseguir-se-á imaginar o que seria se alguém se atrevesse a escrever o mesmo sobre Manuela de Melo? Não, Paulo Cunha e Silva não é, como li algures, a "única vaca sagrada da cidade". Há mais. E ainda bem. Isabel Alves Costa (é possível dizer o nome dela sem sentir um arrepio a desaguar nos olhos? Dez anos depois, ainda não sou capaz) também é. Manuela de Melo também. Não tem a ver com endeusamento, como agora por aí se diz; tem a ver com reconhecimento e com gratidão, sentimentos para os quais nunca nenhuma manifestação é excessiva. Triste é quando a cidade esquece. E, às vezes, a cidade também esquece. Às vezes, em tempo real.
Quanto ao mais, Regina Guimarães pergunta ainda por que razão nenhum sociólogo saiu em devido tempo em defesa de Bauman, denunciando o alegado uso enviesado que Paulo Cunha e Silva fez do seu conceito. Permito-me devolver a pergunta a Regina Guimarães: Por que razão nunca o fez ela própria, nomeadamente no conselho consultivo de cultura do qual faz parte desde 2017? E se acha mesmo que os artistas foram servindo "de vanguarda do processo de neocolonização da cidade", por que aceitou ela própria figurar no programa municipal, no âmbito do projecto Cultura em Expansão, antes e depois da morte de Paulo Cunha e Silva?
Sejamos honestos, a discussão que incendiou o burgo nunca foi realmente sobre Paulo Cunha e Silva, pois não?
III
Não sei quantas das pessoas que comentaram a nota de rodapé da folha de sala que deveria ter acompanhado a peça "Turismo", com autoria de Tiago Correia e da sua companhia A Turma, a foram ver. Suponho que nem metade, e estou a ser generosa. E deduzo também que ninguém esteja especialmente interessado em refletir sobre o tanto e tão importante que o encenador e dramaturgo propõe naquela que julgo ser a sua notável peça de estreia. Para minha surpresa, nem sequer o próprio.
A peça de teatro que esteve em cena no Campo Alegre há quase duas semanas é um soco no estômago. É sobre o momento que atravessam as cidades europeias de pequena dimensão, que foram salvas pelo turismo na mesma medida em que entraram em erosão por causa dele. É obviamente também sobre o Porto. De resto, não me lembro de nenhuma outra cidade em que um inquilino tenha morrido na sequência de um incêndio num prédio vorazmente assediado no mercado imobiliário. É sobre um beco para o qual aparentemente ainda ninguém encontrou a saída. Ou não fosse o equilíbrio a mais difícil missão da vida, também política.
Tiago Correia encena a explosão do turismo com sensibilidade e com inteligência, mostrando que em cada moeda há sempre dois lados e que ambas merecem reflexão urgente. Resiste ao juízo de valor fácil e obriga-nos a pensar antes de atirarmos a primeira pedra. Para a peça ser maior, faltou apenas a convocatória do público. Bastaria que um só ator erguesse um dedo e perguntasse: e tu? E tu o que estás a fazer? Sábio Sartre, "o inferno são sempre os outros". Só que não.
De quem escreveu e encenou uma peça com esta sobriedade, uma peça que merece reposição e circulação, esperava um empenho maior em recentrar a discussão. Infelizmente, depois do recreio colectivo que foi surfar no asterisco, seguiu-se apenas uma espécie de lavandaria pública, e já ninguém parece saber exactamente o que está a discutir. É a censura?
IV
Tiago Guedes, diretor do Teatro Municipal do Porto desde 2014, tem sido, por estes dias, a pessoa mais enxovalhada nessa entidade anarquista, sem pudor e sem rosto, que são as Redes Sociais. É a pessoa que mais tem sido injustiçada, mas é também a pessoa que menos importa nesta história. Se Paulo Cunha e Silva, quatro anos depois da sua morte, serviu de bode expiatório para o que parece ser uma insatisfação alargada, Tiago Guedes não passa de uma arma de arremesso político. Porque se realmente se quisesse discutir o seu trabalho como director e programador, ter-se-ia que discutir uma história de sucesso. O sucesso não se faz com uma programação paternalista, com a obrigação de programar todas as companhias da cidade só porque são da cidade. E, no entanto, não me lembro de, nos últimos vinte anos, ter visto tantos criadores e tantas companhias da cidade serem programadas no espaço municipal. Programar é fazer escolhas. As escolhas nunca são inatacáveis. E num equipamento que é da Câmara, todas as decisões são também necessariamente políticas. E em política, como disse Paulo Cunha e Silva, "tomar uma decisão é condicionar o mundo."
Esta segunda-feira, a polémica da nota de rodapé ultrapassou pela direita os temas da ordem do dia da reunião da Câmara Municipal do Porto, para que os vereadores dessem, depois de uma audição à porta fechada, a sua sentença. A avaliar pelas notícias, as que reproduzem os factos, aquela parte da reunião parece ter sido mais uma espécie de conselho directivo da escola primária, que os políticos são peritos naqueles discursos de "nem sim nem são, não foi bom nem foi mau, não vou agora comprometer-me com isto, vê lá se não voltas a ir para a cama sem lavar os dentes". Enfim, parece que absolveram Tiago Guedes. Como se isso fosse realmente importante, descontando o poder simbólico da política que é sempre uma coisa demasiado misteriosa para poder ser entendida pelo comum mortal. Questões sobre as baias e os horizontes da política municipal de cultura, zero. Reflexões sobre a autonomia de um programador, no que ela implica também de arbítrio político, menos que zero. Abordar, mesmo que ao de leve, o bicho mau do mérito, nem pensar. A esquerda parece dar-se mal com essa coisa de que não valemos todos o mesmo. Tiago Guedes até é de esquerda, como é púbico e notório nas suas sucessivas manifestações de apoio ao PS, mas adiante.
Tiago Guedes, goste-se ou não dele, frequente-se ou não o que programa, tem um percurso admirável, uma capacidade de trabalho invejável, um domínio do sector em que opera muito pouco comum e uma preocupação inegável com a inclusão. E a cidade tem respondido ao seu empenho e profissionalismo com adesão massiva. Tiago Guedes pode ir embora hoje, amanhã ou depois. Terá lugar em qualquer teatro de qualquer cidade da Europa ou na direcção de qualquer festival mundial. Muitos devem aliás já estar a salivar por ele. Fez muito porque teve todas as condições para isso na Câmara do Porto, como aliás também Paulo Cunha e Silva. Ambos beneficiaram, e muito, do respaldo do presidente. O problema não é Tiago Guedes, nunca foi. O problema é a cidade. Uma cidade que se recusa a amadurecer, e que continua a confundir a afamada frontalidade portuense com o desejo real de dar um salto em frente. Peço desculpa, não é bem a cidade. São as 300 ou 400 pessoas para quem este assunto foi o assunto maior das duas últimas semanas.
V
Nisto, como em tudo o resto, é preciso memória. E quando a memória falha, é preciso fazer trabalho de casa. E na ausência de ambas, o que se pede é sempre pelo menos honestidade. Rui Moreira, porventura o alvo de todas as críticas, mais ou menos declaradas, mais ou menos encapotadas, cometeu erros nos últimos seis anos, mas na cultura fez quase tudo bem. A começar pela importância dada à própria cultura e pela escolha poderosa de Paulo Cunha e Silva para a concretizar, seguido da generosidade de ter poupado à comparação quem quer que fosse o sucessor de Paulo Cunha e Silva. Cometeu um erro: no segundo mandato deveria ter entregado a vereação da Cultura a alguém, embora não vislumbre a quem. O problema é que os artistas vêem sempre o copo meio vazio, e o poder sempre o copo meio cheio.
A cidade não perdeu espaço para criadores, perdeu talvez espaço para a experimentação, para novos projectos ou para projectos mais underground. Isto resulta de um paradoxo, que é o facto de a Câmara ser tão pró-activa, que acaba por ocupar muito "espaço". Mas só quem cá vive sabe como essa "ocupação" era desesperadamente imprescindível para a ressurreição da cidade.
A reflexão de Regina Guimarães - no texto e não na nota de rodapé - acaba por ser mais dura para os artistas do que para a política da câmara, no que à cultura diz respeito. Mas, como parece ser evidente, os artistas não se reconheceram nela, ou assobiaram para o lado. Implicitamente, Regina Guimarães critica os artistas por não se rebelarem, por terem perdido o sentido crítico e autocrítico. Ao aceitarem os convites das instituições, institucionalizaram-se, abdicando assim do seu instinto natural que é o de pôr em causa. É um paradoxo disfarçado. Não está realmente a criticar-se a exclusão, mas os efeitos colaterais da inclusão.
É legítimo pensar isso e urgente discutir se isso é mesmo assim. Já a instrumentalização política consciente dos artistas não parece muito verosímil. Nem Paulo Cunha e Silva alguma vez quis isso, nem creio que Rui Moreira o urdisse: um plano maquiavélico para domesticar os artistas, fazer deles porta-estandartes da política e neutralizar a sua crítica. Se eles se neutralizaram, neutralizaram-se a si próprios.
Talvez seja mesmo essa a parte mais importante do texto de Regina Guimarães: uma proposta de insubordinação, ou um apelo à revolta contra a subordinação. Regina Guimarães sintetiza mais do que revela. Também por isso teve tanta adesão, porque disse em poucas letras o que outros não quiseram ou não conseguiram expressar. Mas o seu discurso acaba por redundar mais numa explosão do que numa proposta. É um berro. E se assim é, o texto é, insisto, sobretudo para os artistas. Porque não podem defender uma coisa e o seu contrário, ou dizer uma coisa e praticar outra, ou aceitar fazer parte de uma programação institucional e depois queixarem-se por terem sido convidados para uma instituição que tem regras. Poderia não ter?
VI
Mas vamos lá à censura. Tiago Guedes errou ou não errou quando travou a nota de rodapé? O próprio acha que errou e pediu desculpa por isso. E foi saudado, com verdade ou com hipocrisia, por isso. Há quem defenda, como Rui Moreira, que o diretor do Teatro Municipal deveria ter deixado passar a nota, quanto mais não fosse, suponho, porque lhe era fácil antecipar o que se seguiria. Há quem defenda igualmente que deveria ter deixado passar a nota, mas porventura com uma nota adjacente, distanciando-se da posição de Regina Guimarães. E há quem não tenha visto ali qualquer desvio ou insulto, apenas um hino à liberdade de expressão. Como se a liberdade, qualquer liberdade, não tivesse, também ela, regras.
A vida, como o desempenho de qualquer função, exige escolhas. Essas escolhas exigem legitimidade, responsabilidade mas sempre também inevitavelmente subjectividade. Caso contrário, todos poderíamos ser tudo. E sendo todos iguais, ninguém acrescentaria nada a coisa nenhuma. Repito, a vida é feita de escolhas. A de um director - de um teatro ou de um jornal ou de uma fábrica de salsichas - também. Dirigir é isso. É optar por umas coisas em detrimento de outras. E isso não é necessariamente censurar.
Mas assumamos até que a censura surge nesta minha ótica com um vestido eufemista. Tiremos o vestido. Pessoalmente, teria convictamente censurado aquela nota de rodapé (repare-se na escolha dos verbos: escolho travar para Tiago Guedes e censurar para mim). E no dia seguinte teria reiterado a censura. E, ainda hoje, duas semana depois, estaria confortável com ela. Por duas razões. A primeira, por educação. Não se insultam pessoas que não podem defender-se. Quer seja porque já morreram, quer seja porque não estão presentes. Fui educada assim, suponho que esteja fora de moda. A segunda, por respeito pela verdade. Mas a língua portuguesa é extensa, o dicionário de sinónimos é uma espécie de país das maravilhas. Escolham as palavras que quiserem e juntem-lhe o significado que mais vos aprouver. Sou talvez a única pessoa que mantém que aquela nota era impublicável. E se serviu apenas de veículo para que uma aparentemente alargada comunidade de artistas apanhasse o comboio da coragem para denunciar outros casos semelhantes, o que até então nunca fez, falta saber porquê, então, numa coisa Regina Guimarães está carregada de razão: a classe de artistas "não nova" está comprometida. E, nesse caso, é preciso saber com quê e porquê.
É pena que uma discussão potencial tão relevante - e que não se circunscreve à "turistificação" ou à "gentrificação", nem deve esvaziar-se na cultura municipal -, se tenha perdido numa espécie de derby sobre uma nota de rodapé, com a total conivência dos artistas e dos agentes mais ou menos ativos da política. Fala-se do Rivoli - "o teatro municipal mais dinâmico do país, com um projeto claro e dinamizador da cidade, e responsável pelo maior e mais marcante Festival de artes performativas - o DDD", como escreveu Luís Sousa Ferreira, director do Centro Cultural de Ílhavo e do Festival Bons Sons -, porque quase só o Rivoli mexe na cidade. A Casa da Música, a dois meses de completar 15 anos, está há mais de cinco a xanax e ninguém parece incomodar-se. O Museu de Serralves tem-se dedicado essencialmente a programar às prestações a sua coleção, e toda a gente parece agradada. E o Teatro Nacional São João está agora finalmente a tentar ressuscitar, e quem não nota a diferença anda distraído.
No fim disto tudo, só sobra destruição. E, no meu caso, a vontade inédita de ir embora de uma cidade pela qual sou encontradamente apaixonada. Visto de fora, o Porto até pode ser a Disneylândia. Visto de dentro, ainda parece o Portugal dos Pequenitos. O Porto é um desgosto de amor. E, desta vez, a responsabilidade é de quem tendo tido quase tudo não deu valor a quase nada.